Eles começam a preparação de sua festa bem antes do dia marcado e não importa se Paris recebe no outono um sem número de eventos artísticos e salões (da moda, do automóvel, etc). Para a France Galop isso é irrelevante. Ao contrário do que se poderia imaginar, para eles a concomitância dos eventos paralelos ajuda a criar um ambiente propício às corridas. Em uma palavra, quanto mais “agito” na cidade, melhor.
Neste ano, por exemplo, todos os postes de sua principal e monumental avenida, da Place de La Concorde ao Arco do Triunfo, estavam enfeitados com enormes galhardetes grenás informando aos milhares de turistas o que ia acontecer no dia 5 de outubro, ou seja, mais um Prix de l’Arc du Triomphe, o 93º da história, algo que eles consideram uma espécie de “campeonato mundial do puro-sangue de corrida.” E não estão muito longe disso.
O mesmo acontece nas principais estações do metrô; é descer do trem em meio ao burburinho da cidade e dar de cara com mais um anúncio da festa. Como é ir ao cinema e ver um filme sobre a prova antes da sessão principal começar.
Em torno do Prix de l’Arc deste ano, a France Galop montou um meeting de oito Grupos I, entre sábado, 4, e domingo, 5, que em seu conjunto fizeram desfilar diante do público mais de 100 (isso aí!) ganhadores clássicos (de Grupos I, II, III e “Listeds”) vindos de várias partes do mundo. Somente entre os 20 puros sangue que entraram na pista para disputar o Prix de l’Arc, havia animais ganhadores de 28 Grupos I, 10 deles treinados na França, 10 no exterior (Inglaterra, Irlanda, Alemanha e Japão). Para os apostadores e o público em geral, vê-los desfilar no paddock antes do páreo e tentar descobrir quem ganha é a festa dos sentidos.
Ano passado, Longchamp vendeu 52.000 entradas para as corridas de domingo. Este ano, 61.700. A prova principal, cuja largada ocorreu às 16:30 hs no horário local (quase que se poderia acertar o relógio pelo instante da abertura dos boxes) foi retransmitida e vista pela TV, segundo o presidente da France Galop, por cerca de um bilhão de espectadores no mundo.
E em 45 países foi possível ao público estrangeiro jogar na “Grande Corrida”, como eles a chamam, pelos sistemas do Pari Mutuel Urbain (PMU). Seja em “massa simples”, seja em “massa comum” (ou sistema pari mutuel, onde o que se joga no exterior é adicionado ao totalizador local e sensibiliza os rateios eventuais). Nos EUA, por exemplo, foram jogados cerca de US$ 2,1 milhões no Prix de l’Arc.
“Longchamp é uma pista difícil…”
Quando o canadense Nijinsky, até então invicto, perdeu para Sassafras o Prix de l’Arc de 1970, seu lendário treinador, Vincent O’Brien, entrevistado logo após a corrida não pôs a culpa em ninguém. Apenas disse que “Longchamp é uma pista difícil…” E é.
Duas são as qualidades que qualquer animal ganhador do Prix de l’Arc tem que demonstrar: velocidade e endurance, esta no sentido de resistência e vontade de vencer. E dos jóqueis, se espera, antes de tudo, que possuam sangue frio para negociar todas as dificuldades dos 2.400 metros do percurso.
Em uma tentativa corajosa de simplificação, na milha e meia de Longchamp a largada é dada no começo da reta oposta, cerca pela direita, e a pista à frente transforma-se em uma longa ladeira morro acima. A princípio, a elevação do terreno parece suave, mas atinge a altura de 10 metros do chão em seu ponto mais alto (um prédio de quatro andares, mais ou menos). Nesta parte do percurso, a única atitude que um jóquei consciente pode tomar é manter seu animal no ritmo da corrida, mãos abaixadas, rédea longa, pescoço e cabeça entregues a ele. Nada mais, nada menos que isso.
A partir do ponto culminante da reta oposta, começa a longa descida da grande curva – maior e de ângulo mais suave que as nossas. Novamente, a necessária calma para descer essa curva com o animal totalmente equilibrado é fundamental.
Terminada a descida, tudo começa a se complicar um pouco mais quando os concorrentes entram no que se chama de “falsa reta”, um terreno relativamente plano que, em tese, serve apenas para preparar o sprint final. Quem faz correr na “falsa reta” – e a tentação é sempre grande, principalmente para os jóqueis estrangeiros – normalmente não chega.
Finalmente, na reta final, que tem cerca de 500 metros, a largura da raia se expande de modo significativo. Em um solo normalmente macio – esta é uma das características de Longchamp – isso cria várias alternativas possíveis de percurso. Saber qual a melhor depende de sorte e observação do terreno. Nos 200 metros finais, os animais estão normalmente à beira da exaustão e alguns tendem a não conservar sua linha, principalmente se submetidos ao chicote. Um final em Longchamp significa, na maioria das vezes, apenas empurrar e manter o animal em sua linha. Fora dela, o risco de desclassificação é certo.
Longchamp e treinamento
Por óbvio, fazer um cavalo galopar sempre no ritmo da corrida e conseguir mudar de marcha nos metros finais, implica condicioná-lo a isso desde cedo. Este é o conceito básico do treinamento francês, um turfe onde não há relógio nem balança, onde ninguém se preocupa com recordes e a ilusória “glória matinal” da quebra dos cronômetros, e aos animais é ensinado desde cedo ritmo e respiração.
Na França, cavalo bom não treina com cavalo bom. O princípio é muito simples: cavalo bom não gosta de perder, nem em treinamento. Faz parte de sua natureza. Como tal, pôr dois cavalos bons para se medir em trabalho, um contra o outro, pode acabar em desastre. E o pior desastre é quebrar seu espírito antes do dia certo. Craques renomados como Zarkava, Miesque, Trêve, e tantos outros, podem ser vistos nas fantásticas pistas de Les Aigles, em Chantilly, galopando em dupla ou em trinca com animais inferiores a eles. Isso tem o condão de manter preservada sua autoconfiança, algo imprescindível para os treinadores que realmente contam em seu ofício.
Nos últimos anos, desde El Condor Pasa, 12 cavalos japoneses tentaram ganhar o Prix de l’Arc. Um dia vão conseguir, é claro. As frustrações, porém, chegaram a tal nível que, depois do deste ano, onde entraram na raia Gold Ship (por Stay Gold – Sunday Silence), 14º; Just A Way (Heart’s Cry – Sunday Silence), 8º; e a potranca Harp Sharp (Deep Impact – Sunday Silence), 6º, todos eles montados por jóqueis japoneses, o Paris Turf resolveu perguntar ao seu público porque eles ainda não venceram a prova. A maioria dos entrevistados (47%) respondeu que o problema não parece estar na qualidade dos animais, e sim na escolha equivocada de jóqueis que não conhecem bem as peculiaridades de Longchamp. Faz sentido.
Trêve e Corrida
“Trêve é inusitada. O que ela fez para ganhar o Arc de 2013 é fora do comum. Eu sabia que se ela estivesse bem, não havia ninguém para batê-la. Eu fabriquei Trêve, comprei sua avó (Trevillari, por Riverman e Trevilla, por Lyphard), portanto, venci quatro “Arc” como treinador…” (isso mesmo, “treinador…”). Essas foram as palavras do genial Alec Head, patriarca da família Head, ao Paris-Turf no dia seguinte à prova.
Dezessete cavalos tentaram o bicampeonato do Arco desde a sua criação, em 1920. Seis conseguiram, dentre eles, Ksar (pai de Tourbillon), Motrico, Corrida, Tantieme, Ribot e Alleged (o último deles, em 1977/78).
E dizer que Trêve, a sétima bicampeã, foi levada a leilão por seu criador com o preço base de Euros 22,000 (hoje cerca de R$ 66.000) e não encontrou comprador. Somente no último dia 5 de outubro, porém, ela levantou Euros 2,857,000, (cerca de R$ 8.571.000), correspondente ao prêmio de primeiro lugar no Arco. Mais o prêmio do Arco e do Diana de 2013. Ou seja, seus prêmios se aproximam hoje de R$ 20.000.000. Coisas do turfe…
Antes de Trêve, somente uma outra égua conseguiu idêntica proeza: Corrida (1932, Coronach e Zariba, por Sardanaple), criação Boussac, mãe do nosso conhecido Coaraze, pai no Brasil de Emerson, Empyreu, Cligeuse, Rhône, etc. A diferença entre as duas é que Corrida venceu aos 4 e 5 anos, Trêve aos 3 e 4.
Para todos os eventuais interressados em participar dessa festa, sejam proprietários, sejam criadores, é possível informar que a “inscrição prévia” no Prix de l’Arc custa Euros 7,200 – se feita até 31 de maio do ano da prova. Quem decide correr em cima da hora pagou, este ano, a bagatela de Euros 120,000 para alinhar seu cavalo no partidor. E os três japoneses, gastaram entre transporte de ida e volta, taxas, despesas de treinamento na França, etc, etc, uma média de Euros 180,000 (cerca de R$ 1.080.000), cada um, segundo os números do Paris Turf. São essas as dimensões econômicas do Prix de l’Arc no outono parisiense de 2014.
Uma última informação: Trêve era levada de barbada pelo clã Head no dia do Prix de l’Arc (por Alain de Royer-Dupré, também…). Suas últimas três apresentações em 2014, quando não venceu, inclusive na preparatória do “Arc” para as fêmeas, o Prix Vermeille (foi 4ª), não contam. Inclusive, segundo Alec Head, ela teve problemas físicos quando viajou à Inglaterra para correr o Prince of Wales’s Stake, em Royal Ascot, e entrar segundo (viajar cavalo é sempre uma loteria, ainda que seja na Europa…).
Entretanto, a confiança na performance de Trêve era de tal sorte, que Alec aconselhou seu velho amigo inglês, Peter O’Sullivan, na terça-feira anterior à prova, “procurar uma casa de apostas e jogar na égua.”
Mas para os amantes deste fantástico e secular esporte – onde quer que eles estejam neste vasto mundo –, a grande resposta de Alec Head, que tem o hábito de abrir as cocheiras da família em Chantilly à visitação pública, principalmente das crianças que amam os cavalos de corrida, foi a convocação que ele fez na segunda-feira, dia 6: “Venham quando quiserem às nossas cocheiras, vocês serão sempre bem-vindos. É graças a vocês que fazemos o que fazemos. Mil vezes obrigado, pois. E venham, ainda mais numerosos, às corridas.” Um craque, o Sr. Head.
Números do turfe internacional
Na segunda-feira, dia 6, aconteceu a 48ª Conferência Internacional das Autoridades Hípicas no edifício da France Galop, em Boulognes-Billancourt, reunindo representantes de 69 países, e a imprensa especializada. A palestra principal ficou a cargo do criador americano Ogden Mill Phipps, dono da lendária farda preto, boné encarnado, presidente do The Jockey Club da América. Como se sabe, Phipps é inteiramente contra a medicação para correr e sua luta de anos à frente do The Jockey Club – e agora junto aos Comitês do Senado americano – é histórica.
No Relatório Anual apresentado sobre o turfe mundial relativo ao ano de 2013, parece razoável destacar alguns tópicos, como sejam:
. Criação
Em 2013, nasceu um total de 92.606 potros puro sangue no mundo (em 70 países), sendo os EUA o maior criador com 21.275 produtos. Seguiram-se, pela ordem: Austrália (13.665), Argentina (8.032), Irlanda (7.757), Japão (6.825), França (4.809) e Inglaterra (4.420). O Brasil aparece nas estatísticas com 2.669 produtos. Na América do Sul, a Argentina é, de longe, o maior criador (cerca de 7,86% da produção internacional nos últimos três anos).
. Média de prêmios por páreo
No mesmo ano, a média de prêmios distribuídos por páreo, pela ordem, foi de Euros 107,914 (em Hong Kong); 90,074 (na União dos Emirados Árabes – UEA); 70,838 (Coréia); 41,723 (Qatar); 39,548 (Singapura); 34,648 (Japão); 25,780 (Macao); e 24,579 (França). Como se vê, a afluência econômica da indústria das corridas está hoje na Ásia e no Oriente Médio. Na Europa, só a França tem destaque neste quesito.
. Apostas e retiradas sobre apostas
O país onde mais se apostou em corridas de cavalo em 2013 foi o Japão, com um agregado, em Euros, de 19,4 bilhões naquele ano. Seguem-se: a Inglaterra (aí incluídas as casas bookmakers, que são permitidas naquele país) com Euros 12,4 bilhões; a Austrália (bookmakers incluídos, idem) com 11,3 bilhões; a França (leia-se, PMU, e sem bookmakers) com Euros 9,7 bilhões; Hong Kong com 8,0 bilhões; os EUA com 7,8 bilhões, etc. A notar que a França vende mais jogo em corridas de cavalo que os EUA e Hong Kong – e não há cassinos nem máquinas caça-níqueis nos hipódromos do país.
No que respeita ao percentual de retiradas das apostas, o turfe que mais favorece o apostador é o da Inglaterra, devolvendo-lhes 88,9% do total apostado. Seguem-se: a Austrália, com 86%; Hong Kong com 84%; Nova Zelândia com 83,9%; Singapura com 83%; e assim por diante. No Brasil, 70,0% das apostas retornaram aos apostadores, em 2013.
Novamente, a notar que as retiradas das apostas são influenciadas nos países de cultura anglo-saxônica onde é permitida a existência de bookmakers. Claro, eles não carregam os custos de administração dos hipódromos. É o caso do turfe da África do Sul que devolve 81,4% das apostas ao apostador. Entre os que devolvem menos está a Turquia, com 50% de devolução, em função de um imposto estatal de 28,6% sobre o total das apostas efetuadas.
. Impostos cobrados pelos governos sobre a renda das apostas
O recordista de cobrança de impostos sobre as apostas, em valores absolutos, é o Japão, com Euros 2,019 bilhões anuais recolhidos ao governo. Seguem-se: a Inglaterra, com 1,15 bilhão; a Austrália, com 616 milhões; e França, com 519 milhões, etc.
São esses, em resumo, os grandes números da indústria mundial do puro sangue neste começo do século XXI.
Conclusão
Mais um ano, mais um Prix de l’Arc se foram. Poder viajar para ver cavalos de corrida e aprender um pouco mais sobre eles e a poderosa indústria que os cerca, além de um prazer pessoal, é uma generosa dádiva da divindade para quem gosta de turfe. Mas volta-se sempre com a impressão de que nada está perdido, nem nada é disperso e derradeiro para o turfe brasileiro. Nada.
As atuais dificuldades, por óbvio, são imensas, o relacionamento com o poder público tem sido, até aqui, pelo menos equivocado, falta maior unicidade à representação externa da atividade entre nós, e a concorrência das loterias estatais tem se revelado predatória. Tudo isso é sabido.
Mas o turfe brasileiro existe e gera milhares de empregos. Como existem, da mesma forma, as instituições e, principalmente, a fé dos homens que, acima e além de tudo, continuam a praticá-lo. E eles são muitos. Ninguém duvide disso. Como também não é verdadeiro supor que cada eventual ausência implique, necessariamente, um vazio jamais preenchido.
É possível transferir tecnologia que melhore os padrões gerenciais de nosso turfe e, afinal, nos ensine como ampliar nosso movimento geral de apostas? Claro que é. É possível formar novos gerentes e profissionalizar de vez a atividade entre nós? Claro que é. É possível dotar nossas sociedades promotoras de corridas de uma estrutura de organização mais efetiva e menos paroquial? Evidente que é.
Nesta já longa vida, vimos turfes mais afluentes do hemisfério norte imaginarem ter chegado a hora de sua extinção, seja em termos econômicos, seja, principalmente, institucionais – aqueles que definem sua inserção na sociedade local. Houve um tempo, por lá, em que tudo era nevoeiro, e ninguém mais sabia o que queria, nem que alma tinha. Inútil ficar aqui a desfilar exemplos de declínio e regeneração, turfe a turfe, país a país.
Turfe e cavalos de corrida não morrem na alma humana, hibernam. Cabe às novas gerações de turfistas – e elas existem, sim – perceber a necessidade de modernizar o turfe brasileiro em todos os seus sentidos e aspectos, recolocá-lo novamente no rumo de seu desenvolvimento, e seguir em frente. Na certeza de que vai dar certo.