Desde antes de 1960 e durante muitos anos, mantive no Hipódromo dos Canaviais, em Campos, RJ um lote de animais. Como os prêmios lá levantados não eram contados nos Hipódromos principais, para lá iam os animais menos pretensiosos, aqueles que, em princípio, demorariam mais a ganhar no Jockey Club Brasileiro e no Jockey Club de São Paulo. O treinador era Francisco Pereira, pai do ex-joquei e hoje treinador Francisco Pereira Filho, sempre radicado na Gávea. Os jóqueis preferenciais eram o então líder Evilázio Paula e o então aprendiz José Correa, o Joquinha Correa. Eu tinha um acerto com o Presidente do Jockey Club de Campos.
Como eu estava com um jóquei preferencial que se iniciava comigo vindo do Paraná, Antonio Bolino, eu poderia levar de quando em quando o jóquei do Rio para ir lá montar sem avisar antes, chegaríamos no dia da corrida e o Bolino substituía os jóqueis anteriormente contratados. Isso acontecia mais ou menos uma vez por mês, e não havia problemas. Era uma forma de me manter a par das condições de preparo e das possibilidades de eventuais idas para o Jockey Club Brasileiro.
Um dia, como sempre chegando antes na hora do almoço, telefonei para o Presidente avisando que havíamos chegado, para que ele providenciasse as trocas dos jóqueis. Havia naquela tarde uma parelha, Diplomata e Didática, que, como de hábito, era a favorita. Diplomata, a grande barbada, iria com E. Paula, e Didática com J. Correa. Na hora, Bolino montou o Diplomata e a égua foi com o E. Paula. Diplomata era um cavalo de padrão clássico, com um régio pedigree (Fairy King, um Vateller em égua por Pharis e Cassia, filha do invicto Caracalla, um Tourbillion, em Alcine, por Abjer). Ele era um lindo cavalo, com dois inconvenientes, quais sejam: na largada ele cravava no segundo galão, e só depois a muito custo, começava a correr, o que não o impedia de ganhar tal a sua superioridade, e o fato de ser um fundista, era cavalo de 2.400 metros para mais, inconvenientemente, para o turfe brasileiro da época, viciado em páreos curtos, os de distâncias maiores não eram programados. O páreo em si não apresentava problemas, logo que Diplomata começasse a realmente correr, tomaria a frente e ganharia fácil, e Didática seria uma provável segunda colocada. Dada a partida, Didática foi resolutamente para a ponta, e lá ficou até que surgiu Diplomata com grande autoridade. Mas não passou, porque E. Paula passou ostensivamente a cercar, a impedir a passagem de Diplomata, correndo para dentro e para fora, com o chicote em riste. Deu trabalho, mas as grandes superioridades do Diplomata sobre a Didática e a do Bolino sobre o E. Paula resolveu o problema. Após o páreo, quando da repesagem, E. Paula avançou de chicote para o Bolino, houve um princípio de tumulto, um agarra-agarra com intervenção de outros jóqueis e de funcionários. Naturalmente E. Paula foi suspenso por indisciplina, e avisado que um próximo delito acarretaria na perda da matrícula, não mais repetiu a insensatez. Mas foi barrado em definitivo dos meus cavalos, e embora não tivesse provocado mais problemas disciplinares, era visível a sua insatisfação com as consequências de seu mau comportamento. Muitos e muitos anos se passaram, Bolino faleceu em 14 de agosto de 2013, coberto de glórias pelas suas expressivas vitórias no Brasil e no exterior. Quanto ao tal E. Paulo, a última vez que ouvi falar dele, era um ajudante de pedreiro, em Campos.
Fato quase inacreditável aconteceu com o meu cavalo Exchange, que era treinado por Claudemiro Pereira, na Gávea. Um sábado de manhã fui acordado por um telefonema do Claudemiro. O Exchange teria quebrado uma perna, e teria que ser sacrificado, a não ser que eu concordasse com a tentativa de uma imediata operação, a ser feita pelo médico veterinário Protásio Pereira, e que era prestigiado pelo Dr. Adhemar de Faria, um dos grandes beneméritos do Jockey Club Brasileiro e, que havia sido grande amigo do meu pai. Eles aguardavam apenas a minha concordância para o início de uma imediata operação. Eu disse ao Claudemiro que ninguém poderia tocar no cavalo, que deveria ficar dentro do box com o seu cavalariço, e que fosse chamado o Professor Octávio Dupont, um veterinário verdadeiramente genial, com larga experiência de quando veterinário da cavalaria durante a Guerra na Europa, e veterinário chefe do Jockey Club Brasileiro.
Fui para a cocheira com a grande rapidez, e lá já encontrei com o Dr. Dupont. Estavam presentes, além do treinador e de seus empregados, o Dr. Adhemar, o Dr. Protásio, o Dr. Dupont e o Bolino, que após os trabalhos matinais tinha ido para lá. O Dr. Dupont, do alto da sua sabedoria e experiência, fez um rápido exame num jarrete (curvilhão) do Exchange. Mandou que o Claudemiro chamasse um empregado forte, e os dois, o Dr. Dupont e o empregado, colocaram a perna que estava dependurada em determinada posição, e forçaram a parte superior da perna no jarrete. Pois a perna se encaixou, como que por milagre. O Dr. Dupont explicou que, nos movimentos normais dos cavalos, não havia a possibilidade de eventuais desencaixes, mas em certos casos, quando um cavalo não anda para dar uma volta, se ele apenas movimenta os anteriores mantendo os posteriores fixos no chão, a evidente entorse pode ocasionalmente tirar da posição normal o encaixe, pelo movimento inadequado para o lado e não para frente. E enquanto o Exchange andava pelo páteo da cocheira puxado por seu cavalariço, o Dr. Dupont disse que aquele incidente ocorrera pelo habitual confinamento dos cavalos em seus boxes, e cavalos preguiçosos como Exchange eram os mais sujeitos ao problema. Após a magistral demonstração de conhecimentos, o Dr. Octávio Dupont cumprimentou a todos e se foi.
Talvez eu não tenha me expressado bem na descrição do caso, não sou veterinário, mas como simples expectador foi o que vi e entendi. O fato inusitado não ficou por ali. Posteriormente, o Bolino estava com o Exchange perto do partidor aguardando ordem para entrar no seu box, quando saltou do cavalo, avisou ao starter e chamou o veterinário. A perna do Exchange saíra outra vez do lugar. O fato extraordinário já era do conhecimento de todos os veterinários da Gávea que procuravam informações com o Dr. Dupont e iam à cocheira do Exchange para vê-lo. Na hora, o veterinário chamou um dos seguradores e colocaram a perna do Exchange no lugar. O Bolino montou o cavalo andou e trotou normalmente e correu, só não lembro se ele ganhou. Depois do páreo, perguntei ao Bolino se ele não ficara pelo menos preocupado com aquele problema, e ele me disse que não, nos movimentos normais nada poderia acontecer, o problema era no sentido de uma torção, um forte movimento lateral, e não era normalmente o caso.
Um dos casos mais diferentes e surpreendentes aconteceu se não me engano, na década de 80. É possível que eu já tenha abordado o caso, mas ele é tão absurdo que merece ser contado, quem sabe, de novo. Entre 1950 e 1960, um sócio do Jockey Club Brasileiro comprou, pela primeira vez, um cavalo de corridas. Foi um potro, que foi entregue ao competente treinador José Luiz Pedrosa, o pai, que começou no turfe como cavalariço, passou a segundo gerente por méritos, e ficou então conhecido como Zé Veterinário. E, posteriormente, como treinador foi um dos expoentes do seu tempo, tendo sido Presidente da Associação dos Profissionais, com grande sucesso por muitos anos. O novo proprietário, que nascera em um dia 7 de setembro, data da Independência do Brasil, pretendeu e conseguiu o registro do Stud 7 de Setembro com a farda ouro, mangas e boné verdes, cores básicas da Bandeira Nacional. E por mais de 40 anos o Stud 7 de Setembro manteve um ou dois cavalos de corrida.
Na década de 80, estava o proprietário na arquibancada assistindo as corridas, quando viu entrar na raia um cavalo, que não era seu, com a sua farda. Inconformado, solicitou permissão e foi atendido por um então, Diretor da Comissão de Corridas. Após a explicação, o Diretor disse que as fardas não eram iguais, a do novo proprietário teria, no alto do peito perto do ombro esquerdo, três pequenas estrelas verdes. O proprietário não aceitou a explicação, as tais estrelas não eram visíveis, e as fardas deveriam ser diferentes para o necessário entendimento e compreensão dos turfistas, na prática as duas fardas eram iguais.
Iniciou-se ai uma discussão, que aos poucos foi se tornando áspera. Lá pelas tantas, o Diretor, em lugar de ceder e solicitar ao novo proprietário que escolhesse outra farda, e já sem argumentos, declarou que a nova farda não era ouro e sim amarela, e que ouro e amarelo eram diferentes. O proprietário percebeu que tinha vencido a discussão, e disse que era público e notório que no linguajar turfístico “amarelo” era “ouro”, assim como vermelho era “encarnado”, isso para facilitar a enunciação das fardas nos programas de corridas. A palavra “ouro” é mais curta que “amarelo” e as letras “ver” referem-se a “verde”, ficando do “ver” de “vermelho” substituído por “enc” de “encarnado”. O Diretor insistiu amarelo era diferente de ouro. O proprietário então disparou se amarelo era diferente de ouro, ele queria trocar a farda dele, “ouro com mangas e boné verdes”, por “amarelo, costuras azuis e boné amarelo”. Ai foi o Diretor que saltou, aquela não podia, era a mais tradicional farda do turfe brasileiro, e protegida para a família. Mas o proprietário voltou se amarelo era diferente de ouro, porque ele não podia registrar “amarelo, costuras azuis e boné ouro”, se a protegida era “ouro, costuras azuis e boné ouro”?
A discussão terminou ai, o proprietário ficou inconformado, vendeu o seu corredor, vendeu também o seu título de sócio e abandonou o turfe.