Ouro Fino, por Milton Lodi » Jockey Club Brasileiro - Turfe

Ouro Fino, por Milton Lodi

Angelo Jesus da Paz de Cristo, esse era o nome dele, mas só o conheciam como Boca de Sapo. Era um caboclo pequeno e forte, de rosto redondo, e como mantinha quase sempre um esboço de sorriso, sua boca larga ficava ainda mais larga. Boca de Sapo era um apelido muito adequado.

Já nascera no interior, no mundo das fazendas, dos bois, dos cavalos e dos burros, e o seu ganha pão era amansar animais; muito jeitoso, maneiro, safo, simpático, trabalhador e sobretudo gostando do que fazia, foi de menino a homem, de fazenda em fazenda, sempre contratado para acertar de lombo e de boca o que houvesse para ser montado. Muito requisitado, suas semanas só terminavam ao anoitecer dos sábados; ia para casa, modesta mas agradável e que ficava uma légua adiante, fazia sua semanal rala barba, tomava um bom banho, colocava uma camisa limpa, montava em seu alazão e ia para a vila, direto para o botequim, beber umas pingas e saber das novidades. Era ai que tudo mudava; seu temperamento cordial, risonho e manso se transformava em agressividade, em irritação, em vontade de brigar. E era isso que acontecia, não só no boteco onde todos o conheciam e sabiam que não havia que enfrentá-lo, era sair fora e se fazer de desentendido, mas o Boca de Sapo desrespeitava, provocava, ia penetrando nos bailes à procura de confusão, e sempre encontrava outros também tocados a álcool, valentes, bons de briga, e a pancadaria era a tônica das noites dos sábados. Chegava em casa ao amanhecer dos domingos e graças ao Ouro Fino, seu cavalo amigo, que o entendia e que o levava de volta, cuidando para que o seu bêbado e extenuado dono não despencasse de cabeça no seu lombo.

Aliás, Ouro Fino era uma figura importante na vida do Boca de Sapo, que o vira pela primeira vez ainda pequeno, em meio a uma tropa de burros chucros que fora amansar. O pelo dourado, temperamento dócil e o olhar esperto, a nobreza de seu porte chamaram a atenção do Boca de Sapo, que acabou por recebê-lo em troca da doma da burrada. E houve um entrosamento completo, um exímio domador com um cavalo bom, inteligente, ágil e forte; Ouro Fino aprendeu todas as artes e manhas que o seu dono sabia e lhe ensinou. Andava devagar bem calmo ou a passos largos e firmes, seu trote era tão macio que o cavaleiro não saia da sela, seu galope muito cômodo e se necessário corria loucamente, isso tudo aliado a uma beleza incomum.

Ouro Fino era o xodó do Boca de Sapo, que além de levá-lo aos sábados para a vila, aos domingos à tarde, de crinas trançadas com fitas coloridas, desfilava triunfalmente pelas poucas ruas da vila, se apresentava em festas e nos circos que de quando em quando apareciam. Das pencas havia participado pouco, pois nunca encontrava competidores à altura, ganhava com facilidade independentemente de peso ou distância, ninguém ousava enfrentá-lo.

Os anos passaram, com o Boca de Sapo sistematicamente recusando todas as inúmeras ofertas para vender o seu cavalo, até que um dia de manhã, quando a porta da cocheira foi aberta, lá estava Ouro Fino estirado no chão, morto. Boca de Sapo não foi trabalhar, vestiu uma roupa limpa, foi para a vila, e como que sem querer disse que resolvera vender o Ouro Fino. A noticia correu rapidamente, e logo o botequim ficou cheio de gente fazendo todos os tipos de propostas e ofertas. Depois de muita conversa, o Boca de Sapo disse que resolvera fazer uma rifa, que iria correr naquele mesmo dia, à tardinha. Todos os muitos números foram logo comprados, a cidade inteira queria o Ouro Fino, e a rifa rendeu um dinheirão. Feito o sorteio, o felizardo e invejado ganhador foi logo buscar o seu prêmio, e voltou desesperado ao botequim procurando o Boca de Sapo, que dali não saíra, bebendo umas e outras. Aparentemente surpreso com a notícia dada pelo ganhador da rifa, Boca de Sapo de imediato devolveu o dinheiro da compra do número ganhador.

Houve quem quisesse reclamar, se o prêmio não podia ser entregue, todo o dinheiro da rifa tinha que ser devolvido, e as opiniões se dividiram. Mas aquela altura o Boca de Sapo, bêbado e valente, não era mais Angelo, muito menos Jesus, quanto mais Paz de Cristo, e ali mesmo iniciou-se uma monumental briga, uma pancadaria que se alastrou pela vila, e que só terminou muitas horas depois, e em meio aquele saldo de homens bêbados, sujos, esfarrapados, machucados, suados e exaustos, prevaleceu o entendimento de que o Boca de Sapo estava certo. Ele já tinha devolvido o dinheiro do ganhador, que direito tinham os outros de reclamar, se haviam perdido?

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