Sergio Barcellos
O nome é incomum e vem do grego – mitocôndria –, mas seu significado não. Mitocôndria é a dupla membrana celular responsável pelo suprimento de energia de todos os seres vivos. A “casa de força” de animais, plantas e outras formas de vida. Sem a mitocôndria, seria impossível a respiração celular (aeróbica e anaeróbica), como igualmente não haveria função para as células musculares, pois é ela que converte glicose em energia muscular.
Nos mamíferos superiores – humanos inclusive – a mitocôndria é herdada essencialmente do óvulo feminino (praticamente 100%). O que equivale a dizer que só se recebe o DNA mitocondrial através da mãe. Portanto, esse DNA é não-mendeliano, no sentido de que aqui não vale a acepção de que o óvulo feminino fertilizado contém sempre metade da herança genética de cada um dos progenitores. Em matéria de energia, a afirmação não é verdadeira. E por mais que isso possa vulnerar nossa masculinidade, a capacidade de gerar energia é francamente feminina.
O significado da mitocôndria é tão importante, que o entendimento de como ela funciona já migrou para a cultura popular. No filme “O Legado Bourne”, de 2012, as pílulas verdes tomadas por um dos personagens continham um vírus que se auto-implantava nas células do usuário, com o único propósito de aumentar a produção mitocondrial. Transformava-o em um super-homem.
Ficção a parte, o que interessa saber para efeito deste artigo é de como ela agiu em relação aos mais de 300 anos de seleção da raça puro sangue inglês. O que nos remete ao tema fundamental das linhagens maternas no cavalo de corrida.
Como se sabe, o primeiro a prestar atenção às linhagens maternas, e a tentar estabelecer um padrão estatístico de sua influência – hoje reconhecidamente decisiva – na geração de ganhadores clássicos do turfe, foi o australiano Bruce Lowe. Em 1895, Lowe classificou 43 famílias maternas, separando-as em “superiores” e “inferiores”, na exata medida de sua capacidade de produzir vencedores de três grandes clássicos ingleses: o Derby Stakes, o Oaks e o Saint Leger. Nas próprias palavras de Lowe: “Minha impressão pessoal, é de que mesmo os três grandes progenitores (no caso, Eclipse, Matchem e Herod) devem sua sobrevivência e fama às mães com as quais foram cruzados. Meu sistema se destina apenas a identificar a origem e a traçar a evolução dessas notáveis famílias maternas.”
Em 1895, porém, não se tinha sequer encontrado um nome para a dupla membrana celular aqui referida, muito menos decodificado o seu funcionamento. Portanto, Lowe apenas se limitou à pesquisa estatística da origem materna dos ganhadores clássicos de seu tempo, sem dar-se conta de que, por detrás, havia o fenômeno da respiração celular e transformação da glicose, essencial ao sistema muscular, já que é este aquele que demanda uma maior necessidade de energia para produzir o movimento.
Nos anos 1950, com base na tabulação de Bruce Lowe, os poloneses Bobinski e Zamoyski expandiram a pesquisa para nela incluir, não 43, mas 74 famílias maternas espalhadas pelo mundo, que, embora remontem a éguas-matrizes registradas no General Stud Book (GSB), seus pedigrees, ou se haviam perdido, ou sua descendência sido cruzada com cavalos árabes, algo inaceitável pelo GSB inglês.
Nessas 74 famílias maternas se incluem:
Famílias A1-A37 (éguas-matrizes do Stud Book americano); Famílias Ar1-Ar2 (tipicamente argentinas); Famílias B1-B26 (existentes antes do advento do GSB); Famílias C1-C16 (australianas, que remontam à época colonial); Famílias C17-C33 (tipicamente neozelandesas); Famílias P1-P2 (polonesas).
O círculo se estreita
Cerca de 120 anos se passaram dos números de Bruce Lowe, período no qual também as grandes linhagens paternas do thoroughbred, aquelas que remontam a Matchem e Herod, foram progressivamente perdendo espaço para um só e único grande progenitor, o alazão Eclipse, hoje a origem de mais de 85% dos ganhadores clássicos de nossos dias. Uma dominância implacável.
O mesmo fenômeno ocorreu com as linhagens maternas. Das 43 iniciais, raramente se vê um ganhador de Grupo que descenda de números acima da família 30 neste início de século XXI, as tais consideradas “inferiores” em termos de produção dos cavalos de corrida que realmente interessam. De igual forma, também é raríssimo constatar a presença das famílias de Bobinski em vencedores clássicos, e quando isso acontece, é geralmente da América (famílias A1 a A 37) que o produto ocasionalmente descende.
Portanto, o círculo de excelência do puro sangue de corrida tende a fechar-se cada vez mais, sendo aparentemente inútil bradar contra as mazelas da consangüinidade, simplesmente porque ela se tornou um fato na tricentenária construção da raça.
E o motivo é um só: as circunstâncias a que o esporte e a indústria das corridas de cavalo no mundo estão hoje submetidos indicam que esta tendência irá permanecer entre nós por décadas e décadas à frente. E não há nada que se possa fazer a respeito neste momento. Claro, nenhum criador é suficientemente altruísta, ou afluente, para arriscar-se a mudar o que, sob o ponto de vista econômico-financeiro, tem funcionado. Então, o axioma universal passou a ser: copie o que deu certo. Ponto.
Por outro lado, a mudança na forma de apreciar o esporte também sofreu uma revolução nesses últimos 100 anos, desaguando no encurtamento das distâncias clássicas (algo inimaginável no passado da atividade). E até mesmo para vencer na milha e meia dos grandes Derbys do mundo, é preciso velocidade, o que passou a demandar um novo tipo de competidor, morfológica e funcionalmente, diferente de seus ancestrais. Não causa espécie, pois, que as famílias maternas – e é delas que vem parte substancial da velocidade no PSI – tenham se readaptado à forma e as necessidades dos novos tempos.
Então, de quais famílias maternas estamos falando? E o que mudou, em essência, quando passamos a entender melhor o papel do DNA mitocondrial que elas carregam e transmitem integralmente à sua prole? É o tema do próximo tópico.
As oito modernas famílias maternas
Dois cavalos são responsáveis pela esmagadora maioria dos ganhadores clássicos da segunda metade do século XX: Nearco e Native Dancer. O primeiro descende da família materna 4 (a de Nogara); o segundo, da 5 (a de Geisha).
De Nearco (foto), vêm onze linhas paternas, entre estas, a de Northern Dancer, o pequeno gigante canadense da Windfiels Farm. Por sua vez, de Native Dancer vem Mr Prospector. Northern Dancer é família 2 (a de Natalma); Mr Prospector é família 13 (a de Gold Digger). Quem ganha mais neste começo de século XXI não escapa à mitocôndria materna da seqüência 4-5-2-13.
Mudou alguma coisa em relação à série de Bruce Lowe? Mudou. A prevalência da família 1, ancorada inicialmente na capacidade de abordar a distância e carregar peso, características do turfe do século XIX, vem progressivamente cedendo terreno a outras mais adaptadas às contingências do mundo moderno. Mas ela continua sendo importante, claro. Com mais forte razão, em certas regiões ainda impregnadas pela suprema beleza do prolongamento da velocidade no tempo, mesmo que o mercado mundial do puro-sangue considere este fato como uma característica paroquial de sociedades geograficamente afastadas do turfe do hemisfério norte.
Hoje, porém, o thoroughbred que conta, aquele que freqüenta os pódios do planeta e cujo valor econômico pode atingir níveis estratosféricos vem das seguintes famílias maternas, referenciadas aqui – apenas para efeito de metodologia na apresentação – aos monstros sagrados da criação que as integram:
É a de Princequillo (foto), Acropolis, Vaguely Noble, Buckpasser, Shirley Heights e Montjeu. Pela simples enunciação desses nomes, pode-se perceber de que tipo de animal se trata. Mas ela é também a do milheiro Court Martial e a do puro sprinter Ahonoora (este último, capaz de produzir um ganhador do Derby Stakes, embora sua campanha nas pistas tivesse sido direcionada para os 1.000 metros).
É a que, aos poucos, tende a ombrear-se à família 1 como a mais importante do General Stud Book (GSB). A família materna de nada menos que Northern Dancer, Sea Bird, Round Table, Secretariat, Raise A Native, Sir Gaylord, Halo, Alleged, Machiavelllian, Gone West, Kris, Diesis, etc. Haja mitocôndria…
Seu mais ilustre representante, Northern Dancer (foto), deve parte ponderável de sua herança genética – e que herança – à sua mãe, a espetacular Natalma, filha de Native Dancer em Almahmoud (a mesma que está duas vezes no pedigree de Danehill até a terceira geração). Nada parece acontecer por acaso no mundo do cavalo de corrida.
Família 3
A de Wild Risk, Nashua, Forli, do magnífico tordilho Caro, de Dancing Brave e de Manduro.
Simplesmente notável. Bastaria saber que ela é a de Nearco e Ribot (foto), as duas maravilhas da criação Tesio, através, respectivamente, de Nogara e Romanella. Mas é também a de Hail To Reason, que Francesco Varola dizia ser uma das melhores, senão a melhor, influência de Nearco na criação mundial. Uma opinião que o passar dos anos só veio confirmar, pois é de Hail To Reason que descendem Roberto e Sunday Silence. Não bastasse isso, da família 4 vêm também Habitat, Storm Bird (pai de Storm Cat), His Majesty, Neckar, Kenmare, etc.
A de Native Dancer (foto), tout court. Se Native Dancer não fosse o bastante, Sadler’s Wells (filho da pequena e veloz Fairy Bridge), mais Nureyev, Könnigssthul, Hoist The Flag, Djebel, Val de Loir, Sharpen Up e Seeking The Gold seriam.
Família 9
A mesma que está no princípio da centenária criação Aga Khan. A família da velocíssima Muntaz Mahal (“A potranca mais bela que meus olhos já viram“), como escreveu o Honorável George Lambton, depois de comprá-la para o Príncipe nos leilões de Newmarket.
De seu DNA mitocondrial, descendem Nasrullah, Kalamoun, Petite Etoile, a fenomenal Zarkava, Mandesha, Zainta, Shergar, e uma longa linha de vencedores clássicos que parece se prolongar pelos séculos e tem um nome: prepotência genética. Não por outro motivo, a 9 é a mesma de Zamindar, pai de Zarkava, de Tudor Minstrel, Alydar, e, porque não?, do nosso fantástico e belíssimo Emerson (sempre Nelson e Roberto Seabra…).
Não bastasse, ela é, também, a família de Galileo (foto), o excepcional corredor e reprodutor clássico, neto materno de uma das maiores éguas-mães do GSB em qualquer tempo, a alemã Allegretta (1978, por Lombard e Anatevka, por Espresso e Almyra, por Birkhahn). Numa tentativa corajosa de simplificação, Galileo é Allegretta, e Allegretta é Galileo.
Família 13
A de Mr Prospector e do tríplice coroado Seattle Slew. E antes dele, de Pharos (pai de Nearco) e de Tourbillon (o grande eixo da criação Boussac). É de Tourbillon, aliás, que vem Tourzima (1939, por Tourbillon e Djezima), que o atual Aga Khan, considera ser a “rocha” de sua criação (“Como Mumtaz Mahal foi a do meu avô“).
Tourzima está na base da linha materna de Darshaan, Darara, Daliapour, Sinndar, Enzeli, Edabya, Ebadyla, Akiyda, Akarad, apenas para citar os ganhadores de Grupo I de sua estirpe.
A que deu Mill Reef (foto) ao turfe do mundo. Mas também deu Blushing Groom. Melhor que isso, impossível.
Eis aí, os contornos do círculo materno em torno do qual gira hoje a maior parte da elite do cavalo de corrida. Fora dele, é possível vencer, não há a menor dúvida quanto a isso. Mas estar-se aqui, é certeza de freqüentar o lado virtuoso da estatística. E estatística é importante nesta atividade.
Afinidades entre famílias maternas
De forma idêntica às afinidades e não-afinidades em linha paterna (os chamados “nicks”), aos poucos começa-se a descobrir – hoje com o inestimável auxílio do computador, aliado ao progressivo conhecimento da genética dos seres vivos -, que também existem afinidades entre as várias linhas maternas do cavalo de corrida. Principalmente, quando pai e mãe descendem da mesma família, originada esta pela matrona fundadora da tribo. Geralmente, uma “Royal Mare” dos idos do século XXVIII.
Em alguns casos, grandes criadores do hemisfério norte tentam dobrar as virtudes de determinada família, fazendo os dois progenitores virem do mesmo ramo maternal. É o caso, por exemplo, de Klairon, em que seu pai, Clarion, e sua mãe, Kalmia, descendem, ambos, da família 1. O mesmo para Artic Tern, onde Sea Bird e Bubbling Beauty são egressos da família 2. Uma espécie de “inbreeding” sobre o mesmo DNA mitrocondrial.
Outro exemplo é o do excelente His Majesty, avô-materno de Danehill, em que Ribot (o pai) e Flower Bowl (a mãe) são, os dois, família 4.
Mas o caso mais significativo é o de Zarkava (foto) (Zamindar e Zarkasha), da criação Aga Khan, uma das maiores potrancas da história do cavalo de corrida, ganhadora de cinco Grupos I (Prix de Diane e Prix de l’Arc du Triomphe, inclusive), cujos progenitores vêm da famosa família 9, acima referida.
Por outras palavras, as duas linhas maternas que estão na construção de Zarkava são, na verdade, uma só. Zamindar é 9, por intercessão de Zaizafon, sua mãe. E Zarkasha é também 9, via Zarkana. Sabendo do cuidado e do rigor – dir-se-ia quase artesanais – como são decididos os cruzamentos da criação Aga Khan, pode-se imaginar que a escolha de Zamindar, então fazendo a monta nos EUA, não ocorreu por simples capricho ou acaso.
Sem deixar de mencionar que a “rocha” da moderna criação Aga Khan, Tourzima (originariamente Boussac), tem como pai a Tourbillon (família 13) e como mãe a Djezima (idem). Tourzima, pois, é 13 até a medula! Aparentemente, Marcel Boussac, que praticava à saciedade o “inbreeding” em linha paterna, também o amava em linha materna.
O computador está demonstrando que outras combinações também são perfeitamente possíveis entre famílias maternas, na tentativa de descartar o acaso na escolha dos cruzamentos. Mas isso é assunto para outro momento e outra ocasião.
Conclusão
O conhecimento das linhagens maternas do cavalo de corrida serve a dois propósitos concretos: (i) confirmar a autenticidade dos pedigrees, e (ii) funcionar como referência à contribuição de cada família no processo de seleção da raça.
Aquele pequeno número adiante do nome do animal é, na verdade, uma assinatura digital de origem e qualidade. Sem ele, tudo se limita a um exercício de tentativa e erro com respeito aos processos de escolha dos cruzamentos, e termina, invariavelmente, por entregar tudo à sorte. Não é bem assim que funciona uma indústria que se pretende moderna.
Uma das tarefas básicas de qualquer Stud Book do mundo é identificar – com rigor metodológico – de que família materna descende cada animal nele registrado. Este é um trabalho fundamental de pesquisa, necessário, inclusive, para orientar compradores e vendedores de produtos, seja para correr, seja para reproduzir.
Se Eclipse é hoje 85% dos ganhadores clássicos da raça, as combinações entre as várias famílias maternas, entretanto, podem elevar-se a números expressivos. E o pior que pode acontecer diante das incertezas sobre quem é quem, é simplesmente perder tempo e dinheiro.
Aqui, parece valer mais do que nunca o conselho de Wellington: “Na neblina do combate, o importante é saber o que há do outro lado da colina”.
13.08.2013