Recordações inesquecíveis (10), por Milton Lodi » Jockey Club Brasileiro - Turfe

Recordações inesquecíveis (10), por Milton Lodi

Na minha primeira letra F, eu tive três potros, a um deles dei o nome de Ferrari. Era um potro grande, castanho tapado, não era pesado demais, tinha pescoço longo e cabeça pesada. Tinha por pai Four Hills, filho do italiano Moroni na irlandesa Four Bells, por Tetratema. A égua correra na Irlanda e fora para a reprodução na Itália. Four Hills foi um bom ganhador clássico, milheiro por excelência, ganhou muitas corridas na Gávea para o meu pai, e terminou no Ipiranga. A mãe de Ferrari era a francesa Cassia, oriunda da criação de Marcel Boussac. O pai dela era Caracalla, um filho de Tourbillon, que foi invicto em suas sete corridas na França, sempre em páreos de fundo. A linha materna de Cassia era das mais nobres do Haras Fresnay-Le-Buffard, na Normandia, Haras de Boussac.

Com dois anos de idade Ferrari foi levado para o Rio de Janeiro, para a cocheira do treinador Claudemiro Pereira. A ele coube o primeiro box à direita do grande grupo de cocheiras. Quaisquer barulhos diferentes, Ferrari colocava o pescoço pela janela do box para ver o movimento. Era tranquilo, dócil, curioso. Àquela época eu vendia aproximadamente metade da produção do Ipiranga, e apareceu um turfista novato que quis comprar o Ferrari, não sei se por indicação de alguém ou por simples palpite. O que importa é que o interessado, um cigano sempre bem vestido e que tinha uma cor meio cinza e grandes olheiras pretas, acabou me comprando o potro e deixou que ele ficasse com o treinador Claudemiro Pereira.

Com o nome trocado para Tuchaua, o potro mostrou-se muito bom, ganhou logo dois ou três páreos, e foi levado para Cidade Jardim. O tempo passou, até que um dia, o saudoso handicapeur do Jockey Club de São Paulo, o “Seu” Thomazinho, me telefonou para o Rio perguntando quando eu estaria em São Paulo. Coincidentemente, eu iria à semana seguinte, e combinamos um encontro na sala dele, logo após o almoço. Quando eu lá cheguei, ele me disse que havia sido instaurada uma sindicância, sob a suspeita de que teria havido a troca de um cavalo chamado Barbante, um matungo, que surpreendentemente havia vencido com facilidade e por vários corpos.

Naquela época não havia os recursos e os controles de hoje, mas havia um grande zumzum indicando que o tal Barbante havia sido substituído por um castanho tapado de nome Tuchaua, ex-Ferrari. Explicado o problema, o “Seu” Thomazinho me perguntou se eu era capaz, com toda a certeza, de identificar o tal cavalo. Eu respondi que eu frequentava quase que diariamente, pela manhã, as cocheiras do treinador Claudemiro Pereira, que saído do Ipiranga, o cavalo Ferrari ficava no mesmo grupo dos meus, e que o Ferrari, então Tuchaua, era facilmente reconhecível, pelo seu longo pescoço e a cabeça pesada, e pela mansidão, sempre esperando um carinho no cabeção.

Fomos de carro até a Chácara do Ferreira, à época, um centro de treinamento do Jockey Club de São Paulo, distante quinze minutos de carro de Cidade Jardim. Era a hora do passeio da tarde, e um grande número de animais passeava levados por seus cavalariços. O “Seu” Thomazinho havia determinado que o Tuchaua caminhasse passando em grupo pelo local onde eu estava. O cavalo ainda vinha longe, mas destacava-se dos outros pelo pescoço e pela cabeça. Apontei logo para o “Seu” Thomazinho quem era o Tuchaua, o ex-Ferrari. Esperamos ele se aproximar, pedi ao cavalariço para parar um pouco. O carinho que fiz na fronte do Ferrari era o que o cavalo mais queria. Essa comprovação foi o último detalhe que faltava para o processo criminal impetrado pelo Jockey Club de São Paulo.

Eu fui convocado pelos advogados dos criminosos para pessoal e diretamente dizer como eu teria feito a indicação, se eu tinha certeza de que o Tuchaua havia substituído o tal Barbante. A minha resposta foi simples, eu não sabia de eventual troca de cavalos, o que eu tinha certeza era que o cavalo que eu vira com o “Seu” Thomazinho era o Tuchaua, ex-Ferrari. E se ainda houvesse necessidade de mais confirmações, bastava convocar no Rio o treinador e o cavalariço que cuidaram dele na Gávea. A justiça resolveu o caso, houve prisões. Esse caso ocorreu se não me falha a memória, em 1961.

De lá para cá, esporadicamente, houve suspeitas de trocas, mas se é que as houve, foram muitíssimo poucas. Uma que tudo indicou fraude, mas não foi comprovada ocorreu muitos anos depois, no Jockey Club de São Paulo. Um cavalo, domiciliado em Curitiba, PR, foi inscrito para correr em Cidade Jardim. Ele chegou à véspera da corrida, ao escurecer, ficou no box até a hora de ir para o prado. Ganhou com enorme facilidade, contrariando as normais e gerais expectativas. E da corrida foi direto para um caminhão transporte que já o aguardava. Houve muita suspeita, muita conversa.

O Stud Book Brasileiro foi informado, e na manhã seguinte, dois veterinários fiscais foram para o Jockey Club do Paraná. Lá constataram que o tal cavalo havia sido desembarcado pouco depois da meia noite, e já havia outro caminhão aguardando. O cavalo entrou no caminhão não identificado e saiu pela noite à dentro. Os veterinários fiscais ficaram por dois dias no Paraná, procurando indícios, mas nada foi encontrado de positivo. Mais de um ano depois, surgiu a notícia de que naqueles dias de procuras, um cavalo recém chegado de caminhão em uma propriedade rural havia sido enterrado. Mas o assunto já havia sido dado como encerrado.

Hoje em dia, com as fiscalizações com carteiras de identidade, certificados de sinais e perfomances, e o tal chip inserido no pescoço do cavalo sob a crina é quase impossível uma irregularidade desse tipo. Há casos até curiosos, mas que são detectados a bom tempo. Como simples e mero exemplo, posso lembrar o caso da compra de duas éguas com produtos ao pé, que foram adquiridas pelos sócios Haras LLC e Carlos dos Santos, quando de vendas em leilão de animais dos Haras São José e Expedictus. As duas éguas, cada uma com um macho castanho ao pé, foram separadas, cada uma para um dos dois Haras compradores em sociedade.

Quando os produtos estavam na entrada de dois anos, foram juntos dos Haras no Paraná para um centro de treinamento em Teresópolis, Estado do Rio de Janeiro. Quando o primeiro foi à Gávea para correr, a sua carteira de identidade não era compatível. Foi naturalmente instaurado um inquérito, uma pesquisa, e foi constatado que, quando ao pé ainda no Haras São José e Expedictus, os potros trocaram de mães. Não houve maiores problemas, pois as duas compras, de duas éguas com produtos ao pé, tinham sido arrematadas em leilão por dois compradores em sociedade. O caso foi bem resolvido, com o acerto dos documentos. A propósito, o potro que veio a ser criado pelo LLC era Ivoire, ganhador do Derby carioca.

Há muitos anos, entre outros eu tinha dois potros muito parecidos, quase iguais, que vendi para proprietários diferentes. Na entrega dos dois potros, que foi ao mesmo tempo, um empregado idiota trocou os cabrestos, os buçais. Só dois meses depois eu tomei ciência da troca. Propus aos dois compradores quaisquer soluções, até mesmo a devolução dos animais e dos dinheiros, mas eles já tinham se afeiçoado aos potros. Mantiveram os animais e simplesmente trocaram as carteiras de identidade e os certificados. É comum a má prática, por veterinários e treinadores, da não conferência dos documentos dos animais, o não confronto com os documentos. Na Gávea já houve até o caso do Starter, por não conferir os potros novos com as respectivas carteiras, dar aprovação indevida.

Casos de eventuais tentativas de trocas de animais vêm de longe. Um dos mais conhecidos internacionalmente refere-se ao dos cavalos Cinzano e Lebom. Cinzano era o melhor cavalo uruguaio da época, na verdade, um ótimo corredor, e foi exportado para os Estados Unidos. Um dia, um turfista uruguaio foi passear nos Estados Unidos e resolveu passar à tarde em um Hipódromo, e lá viu o Cinzano, mas que iria correr com o nome de Lebom. O bom corredor não havia trocado de nome, era um típico e aparente caso de troca, de substituição de animais. O turfista uruguaio não tinha dúvidas, conhecia bem o Cinzano, já que o vira correr e ganhar várias vezes. Conseguiu comunicar-se com a Comissão de Corridas, que de imediato tomou providências, mas não a tempo de impedir que Cinzano corresse e ganhasse facilmente. A Polícia foi chamada e os responsáveis sumiram ou foram presos, e Cinzano foi pelo Stud Book castrado e desqualificado como puro sangue de corridas. Sem mais poder correr, Cinzano foi levado para um Clube Hípico, e lá se mostrou um ótimo saltador. Cinzano era bom mesmo.

Mas isso é coisa do passado, para evitar e impedir problemas dessa ordem basta que os treinadores, os veterinários e os funcionários encarregados da devida fiscalização, confiram os sinais do cavalo com a respectiva carteira de identidade e com o certificado de perfomances.

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