Instruções, por Milton Lodi » Jockey Club Brasileiro - Turfe

Instruções, por Milton Lodi

            É comum um jóquei correr mal e depois atribuir seu mau desempenho às instruções recebidas antes do páreo pelo proprietário ou treinador. A habitual conversa prévia com o jóquei faz parte da rotina e, muitas vezes, é ridícula e desastrosa. A não ser em casos especiais, de animais que só correm bem na ponta ou no inverso só no fundo do lote. A maioria dos jóqueis recebe as mesmas ou semelhantes instruções, isto é correr colocado, aproximadamente no meio, e fazer correr na reta final; como não há espaço físico quase todos correrem nas quase mesmas posições. É evidente que, pelo menos, boa parte dos cavalos correm com posicionamento diverso do pretendido.

            Há que levar em consideração, desde logo, quatro fatores importantes: a característica normal do cavalo, o modo pelo qual ele costuma apresentar melhor performance; a qualidade dos competidores, se a eles deve ser imposto um ritmo mais forte (caso de turma considerada comparativamente fraca) ou tentar não desgastar o cavalo antes do momento mais importante (caso de turma de iguais ou mais forte recursos); a classe o jóquei (a um A. Bolino, J.M. Amorim, E. Le Mener, I. Quintana, A. Barroso, L.C. Silva, J. Garcia e mais um ou outro , basta explicar quais os detalhes característicos de cada cavalo (se já o correu, se pelo menos já o trabalhou algumas vezes).

            O antigo treinador paranaense Elídio Pierre Gusso (pai dos treinadores Elídio Pereira Gusso e Carlos Pereira Gusso, e sogro do também treinador Gervásio Fagundes) costuma dizer que ao curso de sua longa trajetória na lida com os jóqueis, conheceu dois, que coincidentemente começaram em suas mãos, cuja sensibilidade destoa de quase totalidade: Luiz Rigoni, que após cada corrida “radiografava” o desempenho de todos os animais que haviam participado do páreo, chegando a prognosticar com grande margem de acerto as performances seguintes de cada um deles, e Antonio Bolino, que a partir da segunda vez que monta um cavalo é inigualável na arte de dele tirar o máximo do rendimento e, às vezes até apenas de um trabalho forte, para ter completa sensibilidade das características e poderio locomotor.

            Há muitos anos, na França, o Príncipe Ali Khan contratou o melhor jóquei da época, Roger Poincelet; um proprietário conhecedor de corridas, inteligente e sensível, com bons animais e tendo o líder como contratado, tudo indicava uma formidável aliança. Mas não deu certo, pois Ali Khan instruía demasiadamente, analisava com profundidade o páreo a ser corrido e procurava incutir em Poincelet seus pontos de vista, mas o jóquei confessou que o contrato tivera que ser aberto porque ele se inibia com instruções rígidas, rendia mais quando corria por instinto, por intuição tomando decisões próprias no decorrer do páreo e, embora, a planificação fosse basicamente correta ele tinha muitas vezes que improvisar e as ordens tiravam dele o poder de decisões acertadas.

            Caso curioso ocorreu com outro famoso jóquei, Ray Johnstone, e o mesmo proprietário, Ali Khan. O cavalo HADJI ganhou três páreos consecutivos, todos por uma cabeça; na primeira vitória, Johnstone pediu desculpas ao treinador por quase ter perdido a corrida, alegando desconhecer as características do cavalo; na segunda, disse que a vitória havia sido sem susto, pois o cavalo ainda tinha reservas; na terceira, sugeriu ao treinador vender o cavalo, que havia ganho com tudo e iria custar a ganhar outra vez. Repito as três vitórias foram consecutivas, e todas por cabeça.

            Jean Deforge, grande jóquei Frances do passado, dizia que a qualidade do cavalo é o principal fator do sucesso, e que ao bom jóquei só resta aplicar com simplicidade a melhor tática que convém ao cavalo e as circunstâncias do páreo.

            Mas nem todos os treinadores pensam que deve o jóquei ter liberdade; François Mathet, um dos treinadores de maior sucesso na Europa, já repreendeu um jóquei que acabara de ganhar facilmente com um seu cavalo, por não ter vencido com a tática que lhe havia determinado; e quando em outra oportunidade seu cavalo fez a partida final antes dos últimos duzentos metros como ele havia determinado, reclamou do jóquei sem se importar com as explicações que lhe estavam sendo dadas. Para François Mathet, instruções são ordens a serem cumpridas à risca.

            No âmbito paulista, há jóqueis, naturalmente os melhores, que correm de acordo com o ritmo da corrida e as características de seus conduzidos, como fazem todos os grandes azes do mundo inteiro, há outros, no entanto, que por correrem quase todos os páreos de modo igual dão aos competidores um ponto de referência; por exemplo: R. Penachio (ponta), A. Soares (afastado da cerca interna mesmo nas curvas), L. Yanez (entre os primeiros, “abrindo” na entrada da reta e voltando rapidamente para dentro no “direito”), etc.

            Caso fantástico de instruções inteligentes aconteceu na Gávea, quando da primeira prova da tríplice coroa carioca, em 1958. O favorito era RED CAP, do Haras Guanabara, com campanha em Cidade Jardim e que ia com o jóquei titular da coudelaria, o sensacional Francisco Irigoyen; como “faixa” ia a potranca BUCAREST, ligeira, e que seria pilotada por Ubirajara Cunha. Pessoalmente, Roberto Seabra conversou à sós à hora da ida para o partidor com os dois jóqueis. Naturalmente BUCAREST iria para a ponta, preparando terreno para a reta final de RED CAP. Mas o que se viu foi diferente, RED CAP foi lançado por Irigoyen para a frente, e BUCAREST acomodou-se por volta da sexta colocação. Era um páreo cheio, e logo os principais candidatos ao páreo aceleraram e foram cuidar de RED CAP, o que resultou em um páreo de ritmo forte, as forças desde logo participando ativamente. Os primeiros iniciaram acelerados até o início da reta, e foi aí que BUCAREST, guardada para o final, arrematou brilhantemente para vencer os melhores machos da geração de forma espetacular. RED CAP e os outros ficaram para trás, exaustos. Depois do páreo correu a notícia de que RED CAP não estava bem, tinha ido de Cidade Jardim para a Gávea só para participar de um espetacular plano de corrida com RED CAP montado por Irigoyen, ninguém poderia imaginar que ele é que seria o “faixa”. Mas a arte e o engenho desse criador, profundo conhecedor, contrariaram os próprios fatos. Vale lembrar a surpresa de Ubirajara Cunha ao tomar conhecimento à hora de montar do sensacional plano, e a categoria do mestre Irigoyen no percurso.

            Eu pessoalmente, já estou acostumado com as iniciativas tomadas pelos jóqueis que habitualmente montam para mim, contrariando não instruções, já que procuro apenas lembrar as características do cavalo, e um ou outro detalhe, mas o modo que normalmente iria se processar o páreo. Ultimamente, Edson Amorim ganhou de ponta a ponta com GOURMET em 1800 metros à noite, quando tudo fazia crer que ele correria no bolo, em função de correr pela primeira vez à noite, de vir de parado (cerca de seis meses) e de ter ganho na corrida anterior, correndo colocado para acelerar na reta; Edson entendeu que o ritmo ia ser devagar, e resolver ir para a frente. Com o Bolino, então, nem se fala; como monta habitualmente para mim há vinte e três anos, conhece os cavalos, seus pais e mães e, em muitos casos, até os avós, tendo montado todos, um dos seus grandes segredos é aliar essa familiaridade ao seu instinto e sensibilidade.

             Instruções-ordens são muito perigosas, pois além de dependerem muito do entendimento e da capacidade de quem as da e de quem as recebe, são sempre dadas sobre um imponderável, pois mesmo na eventual previsibilidade de uma corrida, paira sempre a incerteza.

            Instruções-esclarecimentos cabem sempre, são necessários, pois pelo menos atualizam ou relembram os detalhes mais importantes, além dos mais, mesmo os melhores profissionais, às vezes, se rotinizam, montam como profissão, executam seu trabalho de forma monótona, o que em corridas de cavalos significa montar de modo automático, físico, quase impessoal, cumprindo uma obrigação e sem inventiva. As instruções-esclarecimentos ajudam a afastar esse perigo, provocando o raciocínio, despertando o lado da sensibilidade, da perspicácia daquele que, naquele momento, passa a ter toda a responsabilidade, pois é quem vai, além de passar por um risco físico calculado, defender um mundo de interesses e ainda o nome do seu conduzido.

(Artigo escrito em Junho de 1982).

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