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De Lord Derby a Frankel

 Edward George Villiers Stanley (1865-1948), 17º Conde de Derby, foi um dos homens mais importantes e influentes de seu tempo na Inglaterra. Político do partido conservador, soldado (tenente) na Guerra dos Böers, África do Sul, duas vezes Secretário de Estado da Guerra, diplomata (embaixador na França, logo após a I Guerra Mundial). Seu avô, Edward Smith-Stanley ocupou três vezes o cargo de Primeiro Ministro, e seu pai foi Governador Geral do Canadá.

        Um homem do mundo na extensão do termo. Em seu tempo, inclusive, dizia-se que se uma catástrofe viesse a extinguir a família real inglesa, ele seria o único substituto aceitável pelo povo como monarca.

      Mas sua grande paixão sempre foram os cavalos de corrida. E ele os criou como ninguém. Na verdade, ele e Federico Tesio são os dois grandes pilares sobre os quais se assenta o thoroughbred de nossos dias. Com um pequeno detalhe: sem ele, Tesio jamais teria chegado a Nearco, a obra-prima que está na origem de 55% dos ganhadores clássicos deste século. Para quem estiver interessado, os quase 30% restantes descendem de Native Dancer. Sobra pouco para todo o resto.

        A contribuição de Lord Derby para o aparecimento de um novo modelo de cavalo de corrida, uma espécie de divisor de águas entre o competidor do passado (de quem se exigia, basicamente, capacidade cardíaca, pulmonar, e aptidão para carregar peso), e o do futuro, é decisiva na história da raça puro sangue.

        De seus campos de criação saíram animais que revolucionaram o turfe nos dois lados do Atlântico. Como Swinford; o pequeno – e elegantíssimo – Chaucer; e o sprinter Phalaris (nove vezes vencedor entre 1.000 e 1.200 metros, e a quem Franco Varola credita a proeza de ter mudado o perfil funcional do animal de corrida, tornando-o, em uma palavra, moderno). Mas havia outros com a chancela de Edward Stanley. Como se tudo não fosse suficiente, havia nada menos que Hyperion, Pharos, Fairway, Sickle, Pharamond, Colorado, e tantos outros animais notáveis.

        Hyperion impôs-se como uma força dominante da criação no terceiro quarto do século XX. Swinford está na origem de uma poderosa dinastia clássica gerada por seu filho Blandford. Os magníficos Nearco e Pharis – ambos filhos de Pharos –, constituem, até hoje, uma decisiva influência em linha paterna. A linhagem Fairway, que infelizmente tende à irrelevância, produziu, contudo, três vencedores do Derby Stakes nos anos de 1970, como sejam Grundy, Troy, e o desaparecido Shergar.

        Porém, foi na América que o sangue Lord Derby ganhou contornos de imortalidade, quando Sickle, filho de Phalaris exportado para os EUA junto com Pharamond, tornou-se a origem de Native Dancer. E de Native Dancer, através de Raise A Native, chegamos a Mr Prospector.

        Como se sabe, os dois, Nearco (por Pharos) e Native Dancer (por Sickle-Unbreakable-Polynesian) monopolizam totalmente o panorama clássico internacional. Uma estonteante percentagem de ganhadores de Grupo do mundo de nosso tempo descende desta dupla de sonho. E o mais extraordinário aqui, é que todo este sucesso foi obtido a partir de um número reduzido de éguas-matrizes – Lord Derby nunca estacionou mais de 34 mães em seu haras, e isso em 1916. Sua média ao longo dos anos é bem menor que esta. Nada de novo: o fato apenas demonstra que criar bem é uma empreitada onde quantidade nada tem a ver com qualidade.

Músculos e mental

         Há décadas, os alemães se dedicam a criar tipo sobre tipo, com base no primado da perfeição física. É um conceito como outro qualquer, e o resultado final disso tem um nome: durabilidade. O atual Aga Khan perseguiu, durante anos, o sangue Never Bend, desde que Mill Reef, a “máquina compacta” de Varola, assombrou o turfe europeu e mundial. E com isso chegou a Darshaan e Dalakhani, entre outros.

Boussac inventou “uma raça dentro da raça”, repetindo o mantra de cruzamentos sobre quatro de seus heróis das pistas: Asterus, Tourbillon, Djebel e Pharis. Tesio construiu um novo Saint Simon, a quem chamou de Nearco, em cujo pedigree há nada menos que 16 cruzamentos sobre o melhor (e, na opinião de Tesio, o “mais belo”) cavalo do século XIX.

      O canadense Edward P. Taylor foi buscar nos leilões ingleses a última égua Hyperion coberta por Nearco para produzir o puro sprinter Nearctic, pai de Northern Dancer. E reunir em um mesmo pedigree, até a terceira geração, nada menos que Nearco, Hyperion, Native Dancer e o tordilho Mahmoud, avô materno de Natalma. Ou seja, quatro monstros sagrados do turfe e da criação. E quatro gênios de seu ofício por trás deles: Lord Derby, Tesio, Alfred Vanderbilt II, e o Aga Khan.

        O que caracteriza todos esses homens é terem bem nítidos em suas mentes os contornos do que queriam em matéria de cavalo de corrida. E foram premiados por isso. Mas foram premiados, em essência, por produzir algo sem o qual nada funciona em termos de competição: estrutura muscular e um equipamento mental caracterizado pelo indispensável “will to win”, leia-se, vontade de vencer. Pois embora o motor esteja lá, embora haja harmonia física, embora possa haver beleza em seu sentido mais estrito, sem “will to win” não há cavalo de corrida.

        O que esta “raça” Northern Dancer parece transmitir aos seus descendentes é exatamente isso: músculo e mental. Eles podem vir em vários tamanhos (aliás, tamanho neles, não significa grande coisa, na realidade, não significa nada), em vários tons de pelagem, mais corretos ou menos corretos em matéria de aprumos, e com aptidões variadas (ainda que velocidade seja sua marca de honra). Nada disso importa. O que importa, é que quando vão à raia, ganhando ou perdendo, eles lutam.

        Seu ancestral famoso lutava – mesmo quando a distância não lhe parecia a mais favorável (como aconteceu no Belmont Stakes, e o privou de ser tríplice-coroado americano). Seus filhos mais característicos lutam, como Sadler’s Wells, que não tinha os 2.400 metros e só chegava lá na base do puro coração (que os exegetas da forma preferem chamar de “classe”). Seus netos e bisnetos, principalmente aqueles que vêm através de Danzig e Galileo, lutam sempre, mesmo quando no limiar da fadiga aguda (esta, aliás, é a grande característica dos Galileos, a de lutar para não serem ultrapassados). E os exemplos se multiplicam às dezenas. Talvez centenas.

        O problema é que músculo é normalmente perceptível a olho nu. Mental não. Mental depende do teste da raia. Mas depende, sobretudo, de origens, de estirpe, e às vezes mesmo de um treinamento que não conspire para quebrar o espírito de que eles são dotados. Talvez, quem tenha melhor se expressado a respeito tenha sido François Boutin: “É um crime bater num bom Northern Dancer. Eles simplesmente não entendem o motivo. E pode-se perdê-los para sempre, junto com a quebra do que eles têm de singular e único: seu notável espírito combativo.”

O círculo se fecha

         No princípio – estamos falando do século XVIII – era Eclipse (Marske e Spilleta), descendente de Darley Arabian, criado pelo Duque de Cumberland, filho do rei George II (e vendido a Denis O’Kelly, um jogador profissional irlandês).

        Eclipse foi tudo em seu tempo e no século que se sucedeu. Ao ponto de fazer a linhagem Darley Arabian estar hoje na origem de 90% (isso mesmo, 90%), dos cavalos de corrida modernos. A única linha masculina que sobreviveu intocada ao teste do tempo. Eclipse foi tão importante para a sociedade inglesa de seu tempo, que, em Waterloo, o Duque de Wellington escolheu montar Copenhagen, um de seus netos, durante a batalha que selou a sorte de Napoleão e redesenhou o mapa da Europa.

        Passam-se mais de cem anos, e, em 1881, nasce o inglês Saint Simon (Galopin e St. Angela, por King Tom), o invicto Saint Simon, paixão de Federico Tesio, do Coronel Vuilliers (inventor do sistema de dosagem de pedigrees), e do Aga Kahn, avô do atual. Com 1,65 m, elegante, castanho escuro (na reprodução, só gerou um produto diferente de castanho, aliás, seu último produto, uma potranca tordilha), garupa redonda e musculada, dorso curto, dotado de excepcional têmpera e presença. E tudo no mundo do turfe passou a ser a busca pelo Graal do sangue Saint Simon. De reis, como Eduardo VII, a plebeus afluentes, não havia outra escolha. Tudo era uma corrida na direção de Saint Simon.

          Até que, em 1935, 54 anos depois, Tesio copia Saint Simon e cria o também invicto Nearco, segundo ele, “equilibradíssimo, de tamanho perfeito e grande qualidade. Capaz de ganhar todas as suas corridas, assim que solicitado a fazê-lo.”

        Antes disso, em 1924, Lord Derby cria Sickle, irmão inteiro de Pharamond, ambos por Phalaris e Selene, por Chaucer (como se sabe, Selene era mãe de Hyperion e do nosso conhecido Hunter´s Moon), e, não por outra razão, “inbred” 3 x 4 sobre Saint Simon. Vendido ao magnata americano James Widener (Elmendorf Farm), Sickle se torna líder das estatísticas americanas de reprodutores em 1936 e 1938.

        E produz Unbreakable, pai de Polynesian, este último o ganhador do Preakness Stakes de 1945 e “Campeão Sprinter da América” naquele ano. Chegara o reinado da velocidade pura. E Polynesian entra para o Hall da Fama do turfe dos EUA por ser o pai da segunda maravilha da criação mundial no século XX, o tordilho Native Dancer. No mundo do turfe, onde quer que houvesse um criador de cavalo de corrida, só havia uma saída: curvar-se reverente à dupla Nearco / Native Dancer.

        No proscênio desse enorme teatro, entretanto, em meio aos pódios de Longchamp, Ascot, Newmarket, Belmont, ou em qualquer lugar onde houvesse um hipódromo digno deste nome, dois personagens lendários dessa atividade pareciam observar do alto a excelência de sua obra: Lord Derby e Tesio. Sem eles, não haveria o mar de pompas que precede a simples menção dos nomes de Nearco e Native Dancer.

Como já acontecera antes com Eclipse e com Saint Simon, tudo passou a ser Nearco e Native Dancer na imaginação e nos desejos, recônditos ou não, dos criadores de cavalos de corrida do mundo.

E depois desta viagem tri-secular, chegamos às duas grande vertentes: as de Northern Dancer e de Mr Prospector. Fora delas não há salvação. Ou há, mas junto com esta possibilidade e esta confissão, quem pretender se arriscar a descartá-las sabe muito bem que está remando contra a maré estatística de sua implacável dominância do turfe internacional.

Portanto, cada vez mais, o círculo da excelência se estreita. Cada vez mais, a disputa da indústria pelos pódios do mundo se concentra em torno do sangue de apenas dois sementais. E diferenças de décimos de segundos marcam o confronto de animais clássicos que têm, invariavelmente, as mesmas origens. Até ao ponto de cruzar-se Northern Dancer com Northern Dancer, ou Northern Dancer com Mr Prospector, ou Mr Prospector com Mr Prospector. E suas descendências parecem inesgotáveis na produção de campeões.

Não causa espécie, pois, que o atual e maior campeão de todos os tempos – pelo menos segundo o Timeform –, não é produto de outra coisa, senão a repetição de cruzamentos entre descendentes de Northern Dancer. Como se verá adiante.

A maravilha Frankel

         O que se pode dizer de um cavalo de corrida considerado rating de 147 libras-peso pelo Timeform e, portanto, teoricamente, melhor que Sea Bird; melhor que Mill Reef; melhor que Ribot; melhor que Brigadier Gerard?

        Seus críticos – e sempre os há – anotam que ele só correu na Inglaterra; nunca foi testado nos 2.400 metros, como fizeram os quatro acima citados; o máximo que viajou foi 170 milhas (272 kms), igual à distância entre Newmarket e York (enquanto Black Caviar, por exemplo, viajou 10.550 milhas, a distância entre Austrália e Inglaterra, para bater os melhores sprinters ingleses em Royal Ascot), etc, etc. etc.

        Para a famosa publicação inglesa, entretanto, é a qualidade de suas performances que distingue Frankel do resto e justifica o rating de 147 libras-peso. Dele, nunca ninguém perguntou se ia vencer, mas sim por quantos corpos ia vencer. A despeito dos críticos, o mercado mundial do puro sangue de corrida admite que Frankel valha mais de £ 100 milhões, com sua cobertura custando £ 125 mil. Inútil, pois, “brigar com o mercado”, como advertem os americanos. É isso que Frankel vale para ele, portanto, é assim que é.

        Para este artigo, ao fim e ao cabo, o que interessa mesmo é saber como Frankel foi construído, de quem ele descende, e quais são suas grandes características como corredor.

       Ele descende do cruzamento de Northern Dancer sobre Northern Dancer. Seu pai, é neto de Northern Dancer; sua mãe é bisneta de Northern Dancer. Como se não bastasse, ele é “inbred” 3 x 4 sobre o pequeno gigante da Windfields Farm, o que o faz 4 x 5 sobre Nearctic; e – nada melhor – 4 x 5 x 5 sobre Natalma, mãe de Northern Dancer. Em resumo, mais uma vez, é Lord Derby e Tesio, ou Tesio e Lord Derby, ou Europa sobre Europa, que a ordem aqui é irrelevante.

        O que, em essência, Frankel carrega em suas veias? Carrega uma herança genética que privilegia músculo e mental.

        Mas, do ponto de vista estatístico, carrega mais: a insuperável qualidade dos 137 ganhadores europeus de Grupo gerados, até aqui, por Galileo, seu pai. Aos quais se somam os outros 327 gerados por Sadler’s Wells, pai de Galileo. Mais os 198 de seu avô-materno, Danehill. Somemos: por trás de Frankel, até a terceira geração, há reprodutores que produziram, até agora, 662 ganhadores de Grupo, somente na Europa. Sem contar os filhos clássicos gerados por Danzig, pai de Danehill. E eles são muitos e não menos notáveis.

        Ou seja, sobre o aspecto estatístico, Frankel, nascido na púrpura, reúne em seu sangue o crème de la crème da criação mundial. E o cruzamento de Galileo com mãe Danehill – de que são exemplos os excelentes Teofilo, Golden Lilac, e Roderic O’Connor, o último deles atualmente fazendo a monta no Brasil –, caminha para ser uma espécie de nova peregrinação a Meca da criação mundial. E pode-se apostar que este cruzamento será repetido “ad nauseam” pelos anos que virão.

        A família da qual Frankel descende, entrou nos anos de 1980 para o plantel de seu criador, a Juddmonte Farm, quando sua bisavó materna Rockfest (por Rainbow Quest) foi comprada por Khalid Abdullah ao proprietário e criador americano John Hay Whitney, que mantinha parte de seus animais na Europa aos cuidados do treinador Jeremy Tree.

      Kind (por Danehill), mãe de Frankel, ganhou sua eliminatória em 1.400 metros e obteve mais cinco vitórias aos 5 e 6 anos. Frankel é o segundo produto de Kind (o primeiro foi Bullet Train, por Sadler’s Wells, vencedor do Lingfield Derby Trial). O terceiro, é Noble Mission, ganhador do Gordon Stakes, em Goodwood. Kind também é mãe de uma potranca inédita por Oasis Dream.

        Para o Timeform – Racehorses of 2012, pág. 401, “Frankel não tem mais nada a provar. Ele foi um fenômeno que maravilhou o mundo das corridas e sua legenda é suficientemente forte para durar, e mesmo florir com o passar dos anos.”

        Castanho, forte, musculado, com uma grande estrela branca na testa, calçado de seus quatro locomotores, voluntarioso ao nível da temeridade aos 3 anos de idade, do tipo que larga correndo e é impossível conter (não por outro motivo sempre usou uma cabeçada em “oito”), o cavalo de Khalid Abdullah é, antes de tudo, um paradigma de velocidade. Ou mais que isso. Talvez, ele seja mesmo o som e a fúria da frase de Shakespeare no “Macbeth.”

Sua performance na milha dos 2000 Guinéus de Newmarket, quando livrou mais de 15 corpos sobre os adversários no meio do percurso e venceu por seis, contido, é considerada “inacreditável” pela crônica inglesa. E sua forma de galopar – dir-se-ia, agredindo e arrancando parte do terreno com os anteriores –, era tão intensa e tão inusitada que ele chegou, inclusive, a se alcançar em trabalho.

Seu treinador, o lendário Henry Cecil, comentou após o Champion Stakes, de Ascot, quando ele se despediu das pistas diante de uma assistência de 33.000 pessoas: “Ele é o melhor que eu tive, e o melhor que já vi. Ficaria muito surpreso se um dia aparecesse alguém melhor que ele.”

De Lord Derby a Frankel, como se vê, os últimos quase 300 anos de turfe mundial parecem ter girado em torno de alguns poucos e raros animais que tendem a se perpetuar no topo da pirâmide da criação.

    É a passagem de bastão entre esta super-elite de verdadeiros fenômenos de prepotência genética que dá vida e sentido ao cavalo de corrida. Na raça puro sangue, pois, nada parece ser mais verdadeiro que a frase de Tomasi di Lampedusa no “Il Gattopardo”: “Tudo tem que mudar, para permanecer como é.

31.05.13

Sergio Barcellos

(Transcrito dos sites da ABCPCC e Raia Leve) 

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