Recordações inesquecíveis (3), por Milton Lodi » Jockey Club Brasileiro - Turfe

Recordações inesquecíveis (3), por Milton Lodi

Houve época em que as coisas do turfe estavam dependentes de uma entidade, ligada ao Ministério da Agricultura, que se chamava Comissão Coordenadora da Criação do Cavalo Nacional (C.C.C.C.N.). Essa C.C.C.C.N. seria a responsável por toda a equideocultura brasileira, isto é, cavalos, jumentos e tudo aquilo que dizia respeito a equídeos, naturalmente incluídos os equinos e, especificamente, os cavalos de corrida. Assim, a C.C.C.C.N. ditava e fiscalizava os regulamentos e normas em nome do Ministério da Agricultura. Os próprios registros no Stud Book Brasileiro estavam sob o controle da entidade, e por ela passava toda a documentação referente às transações.

A C.C.C.N. prestou bons serviços, era uma entidade séria, correta, que teve Presidentes civis e, também, militares. No caso dos civis, o entendimento quanto ao turfe era mais fácil, pois de um modo geral era gente com pelo menos um pouco de familiaridade com o setor do puro-sangue de corridas. Houve até um ilustre criador e proprietário turfista que foi Manoel (Nelito) Justino de Almeida Neto, que foi um ótimo Presidente. Os militares eram sempre generais, aparentemente escolhidos a dedo, pois eram de relacionamento afável, amigável, educado, compreensivo, mas na verdade não tinham intimidade com os meandros do turfe. Eram mais ligados ao esporte hípico no setor dos animais de salto e de adestramento. Compareciam aos grandes eventos turfísticos em um clima amistoso e agradável.

De vez em quando nas reuniões do Conselho da C.C.C.C.N., que eram frequentes, surgiam casos que fugiam ao conhecimento de todos, e mesmo tendo um funcionário habilitado que cuidava, especificamente, do setor do turfe, o Presidente apresentava os assuntos nas reuniões, e lá sempre os representantes da Associação Brasileira e do Jockey Club de São Paulo esclareciam e opinavam. No geral funcionava bem, havia boa vontade e compreensão de todos. Mas a falta de intimidade com as coisas do turfe, e sempre no interesse e desejo de preservar e incentivar a criação nacional, surgiu um problema.

O grande criador Roberto Grimaldi Seabra, que com o seu irmão Nelson criava em estilo internacional o famoso Haras Guanabara (SP), em suas andanças pelo mundo, entendeu de negociar um cavalo para correr provas de “steeplechase”, se não me engano na Alemanha (ou França, não me lembro bem). Tratava-se do cavalo Scherzo, um filho de Royal Forest e Scotch Kilt. Esse cavalo havia se iniciado em Cidade Jardim, mostrara-se muito bom, mas teve um contratempo e teve que parar. Levado à Gávea, após alguns meses de recuperação, apresentou-se muito baldoso e negava-se a seguir correndo após passar pelo disco de chegada. Apesar de todos os esforços, Scherzo parava após a linha de chegadas, o que o limitaria a páreos de até 2.000 metros, e as grandes e mais significativas provas eram de 2.400 e 3.000 metros, com duas passagens pelo disco.

Por isso, Roberto resolveu vendê-lo, e com as normais castrações em cavalos de “steeplechase” e em ambiente completamente diverso e com pistas com percursos longos e trajetos diferentes, tudo deveria dar certo. As alturas dos obstáculos nas corridas de “steeplechase” são normalmente bem menores que os das competições de saltos e grande número de corredores saem das pistas europeias de corridas rasas para as de “steeplechase”.

O Roberto chegou da Europa, e foi ao Stud Book Brasileiro, então nas mãos da C.C.C.C.N., para providenciar a papelada para a devida exportação. E foi informado que Scherzo não podia deixar o país, tinha um pedigree especial, sendo assim considerado um raçador, e como tal, tinha que permanecer no Brasil para colaborar na melhoria da raça. O Roberto objetou, além do cavalo ser dele, ele tinha o direito de ser levado para fora do Brasil. Scherzo tinha um bom tipo físico e um ótimo pedigree, além de ter mostrado muito boas qualidades no início da campanha em São Paulo, mas tinha um gênio complicado, tinha manias, tinha baldas, e na reprodução teria muitas possibilidades de transmitir suas más qualidades ou defeitos. A C.C.C.C.N. não concordou, Scherzo era um raçador e não poderia sair do Brasil. E, quando o Roberto disse que se era assim, nenhum produto criado nos Haras Guanabara, Mondesir e São José e Expedictus, entre outros, também não poderiam sair e a resposta foi afirmativa, não poderiam sair mesmo, pois aqueles Haras citados e mais alguns outros, tinham obrigatoriedade de participar da melhoria do padrão do cavalo brasileiro.

O Roberto ficou muito zangado com aquela determinação, pois o Scherzo já estava negociado e uma eventual explicação ou justificativa do motivo da não confirmação da lícita transação seria expor o Brasil ao ridículo no mundo turfístico. Mas o Roberto teve uma ideia. Comunicou-se com o comprador europeu e perguntou se haveria algum inconveniente do cavalo já chegar lá castrado. O comprador achou bom, era menos um trabalho e risco. E o Roberto mandou castrar o Scherzo, e com os atestados veterinários da castração voltou à C.C.C.C.N. Como o Scherzo já era castrado, não podia ser um raçador, e assim, nada poderia haver contra a exportação. E foi assim que a viagem do Scherzo foi liberada, e teve como consequência a revisão do tal conceito de raçadores. Caiu por terra a tal deliberação.

Esse caso foi eventual e esporádico, pois a C.C.C.C.N. trabalhava a contento, mesmo sem ter intimidade com as coisas do turfe, e eram assuntos para as reuniões do Conselho. Às vezes surgia uma ideia ou proposta surpreendente como, por exemplo, a instituição de um Stud Book do cavalo pantaneiro, que é um cavalo de qualquer raça, registrado ou não, quase sempre “peludo”, que é levado para a zona do Pantanal. E que só sobrevivem aqueles que resistem à anemia infecciosa e os que conseguem comer o capim que fica abaixo do lençol de água quando da época das grandes chuvas. Cavalos completamente díspares, sem quaisquer controles de criação e de sanidade, na verdade, sobreviventes sem quaisquer qualidades a não ser de se manterem vivos. Mas a ideia foi sepultada. Pelo menos era assim o panorama do cavalo pantaneiro à época.

Gostou da notícia? Compartilhe!

Pular para o conteúdo