Recordações inesquecíveis (2), por Milton Lodi » Jockey Club Brasileiro - Turfe

Recordações inesquecíveis (2), por Milton Lodi

Era um dia claro, tempo firme, mas as raias estavam pesadas. Era um domingo muito especial, pois ia ser corrida a terceira prova da Tríplice-Coroa Paulista, o Grande Prêmio Consagração e, havia um candidato à Tríplice Coroa. Tratava-se de Fitz Emilius, o único filho de boa categoria dada pelo garanhão Honeyville. Esse reprodutor foi importado pelo Jockey Club de São Paulo para seu posto de Fomento Agro-Pecuário, mais conhecido como Posto de Monta de Campinas. O Clube durante muitos anos capitaneou a criação brasileira, utilizando-se de cavalos nacionais de resultados especiais nas pistas. Como simples exemplos o Tríplice-Coroado carioca Quiproquó e o grande campeão Zenabre e importados que confirmaram as suas altas expectativas, como por exemplo, Coaraze, Henri Le Balafré, Al Mabsoot e Breeder’s Dream, entre outros. Mas, Honeyville não correspondeu, pois apesar de boas possibilidades, só deu um ótimo filho, o candidato à Tríplice-Coroa Fitz Emilius.

À época, a Comissão de Corridas do Jockey Club de São Paulo tinha nove Comissários, além dos demais, que se revezava em grupos de três. Assim, cada comissário trabalhava uma semana a cada três, mas todos os Comissários que não de plantão costumavam frequentar a comissão nos dias de corridas, e também tinham direito a voto. Naquela tarde do Consagração, compareceram para o almoço oito Comissários (um estava em viagem pelo exterior). Acabado o almoço, que foi mais alegre que o normal pelas brincadeiras que eram feitas ao comissário Manuel (Nelito) Justino de Almeida Neto. O Nelito se levantou e disse que ia passar à tarde na varanda da arquibancada, queria assistir a consagração de um crioulo seu, e desceu sorrido, ante as risadas gerais. Assim, dos oito Comissários julgadores, sete ficaram para trabalhar.

Era um dia de festa, as arquibancadas estavam cheias. Na opinião geral, Fitz Emilius dificilmente perderia, em se considerando as suas convincentes vitórias nas duas primeiras provas da Tríplice, os Grandes Prêmios Ipiranga e o Derby Paulista. Entre os seus competidores, só havia um que ainda não o havia enfrentando, o potro Orff, que vinha do Rio.

Em um piso muito pesado, Fitz Emilius como sempre correu bem colocado, e na entrada da reta tomou a ponta. Mas não tirou e não se desprendeu do lote. Muito exigido pelo seu habitual jóquei Eduardo Le Mener Filho, mantinha a vantagem com luz, mas não aumentava a diferença. Foi quando surgiu Orff, montado por José Machado, o conhecido Machadinho que montava ao estilo de Oswaldo Ulloa e, que hoje e já de algum tempo, é professor da escola dos Aprendizes na Gávea.

Orff foi direto para a cerca externa, onde sempre na grama de Cidade Jardim, especialmente quando pesada, dava boa vantagem. Orff pela cerca de fora tomou a ponta e livrou mais de cinco corpos, enquanto Fitz Emilius, então em segundo, não esboçava reação. De repente, inopinadamente, Orff começou a se desviar da cerca de fora, foi atravessando a raia em diagonal e se aproximando fisicamente de Fitz Emilius, que se mantinha junto à cerca interna. Como de hábito, os Comissários trocavam impressões durante a fiscalização no desenrolar dos páreos, e havia opiniões que os dois corredores iam acabar se chocando. E foi o que aconteceu, nos últimos cinco ou dez metros antes do disco, Orff, com vantagem da ordem de três quartos de corpo, chocou-se com Fitz Emilius e venceu o Consagração.

Imediatamente, o prado ficou em reboliço, uns achando que se impunha uma imediata desclassificação, outros entendendo que Orff havia vencido como melhor, e se ele não tivesse se prejudicado saindo do piso e se desviado e se prejudicado ao atravessar a raia pesadíssima, teria vencido por boa margem. O então Presidente da Comissão, que havia declarado que não votaria por estarem sete Comissários para o julgamento, mandou que se fechasse a porta e cerrassem as cortinas, para que se pudesse ver melhor o incipiente filme da época. O filme foi passado várias vezes, e foi iniciada a votação, que seguiu o seguinte ritmo: confirmo, desclassifico, confirmo, desclassifico, confirmo, desclassifico. E não veio o sétimo voto. O Presidente mandou acender as luzes e verificou que só estavam presentes seis Comissários, o porteiro da sala informou que logo após o páreo o Comissário José Luiz Bianchi, o Zeca, havia saído correndo e descido pelo elevador.

O Presidente mandou chamá-lo com urgência e disse aos seis Comissários que eles não se manifestassem. Quando o Zeca Bianchi chegou, foi informado que a Comissão estava esperando por ele para que fosse iniciada a votação. O filme do páreo seria mostrado quantas vezes fossem necessárias e, ai, o próprio Zeca seria o primeiro a votar. O Zeca disse que não precisava ver o filme, já tinha opinião formada. Mas as luzes foram apagadas e o filme passado duas vezes. O Presidente pediu então, ao Zeca o primeiro voto. Ele disse que não tinha nenhuma dúvida, o esbarrão entre Orff e Fitz Emilius não tinha alterado o resultado da carreira, e por isso votava pela confirmação. Foi ai que ele soube que tinha decidido a votação, por 4 x3.

Naturalmente, casos como esse acendem os turfistas em calorosas discussões, todo mundo tem opiniões e argumentos. Mas, na segunda-feira, dia seguinte ao Consagração, fui falar com o Le Mener, que costumava montar os meus cavalos nos eventuais impedimentos de Bolino. Ele me disse que a decisão tinha sido acertada, o seu cavalo não havia corrido como de costume, e Orff havia vencido em boa lei.

Mas o então Presidente da Comissão de Corridas do Jockey Club de São Paulo, carioca que já estava sediado em São Paulo havia muitos anos e, lá constituído família, e que era autoritário e muitas vezes injusto em função de preferências pessoais (deixou claro que ele não jogava); tomou a si a responsabilidade e aplicou ao jóquei de Orff, José Machado, uma suspensão por noventa dias. Injustos três meses, mesmo sabendo, no dia seguinte da corrida, que Orff havia mancado de um anterior na corrida, o que explicava e justificava o desvio.

A tristeza do criador Nelito Almeida e dos proprietários Roberto Gabizo de Faria e Francisco de Paula Pinto foi, em parte, recompensada em 1976 no ano seguinte, Fitz Emilius, que em 1975 já era ganhador de Grupo I, em 1976 voltou a correr muito bem nas provas clássicas, tendo entre outras marcantes performances um 2º no Grande Prêmio São Paulo e uma vitória no Grande Prêmio Cruzeiro do Sul (Derby Carioca).

Fitz Emilius foi um dos mais brilhantes corredores de sua época, mas na reprodução, como o do seu pai Honeyville, não foi bom.

Para terminar, para mostrar que os deuses do trufe não são injustos, ditam os seus caminhos com razões que nós desconhecemos. Em 2012 no Hipódromo da Gávea, Plenty of Kicks, de criação e propriedade de Luís Antonio Ribeiro Pinto, filho de Francisco de Paula Pinto, foi um brilhante Tríplice-coroado.

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