Ratings: ou de como se avalia um cavalo
Sergio Barcellos
Avaliar de forma correta os méritos de um cavalo de corrida está entre as coisas difíceis desse esporte.
Milhares de livros foram e continuam a ser escritos sobre conformação, pedigrees, linhas paternas, famílias maternas, compatibilidades e não-compatibilidades entre as várias linhagens, treinamento, forma de conduzi-los em competição, etc, etc, cobrindo praticamente todos os aspectos das qualidades, virtudes e limitações de um thoroughbred.
No século XIX, começaram as primeiras tentativas de padronização. Daí, evoluiu-se para o estudo da tipologia do puro sangue inglês de corrida, até chegarmos – com o auxílio da moderna genética – a um melhor conhecimento desse espetacular ser híbrido de mais de 350 anos de seleção.
Foi o inglês Phil Bull, professor de matemática da Leeds University, criador do “Timeform”, um dos maiores apostadores profissionais de seu tempo – estima-se que tenha ganho £ 4,6 milhões entre os anos de 1943 a 1975 – o primeiro a desenvolver um método para medir a qualidade de um cavalo atribuindo um rating (“avaliação, classificação, graduação”) para cada um dos animais que um dia pisaram uma pista de corrida da Inglaterra.
O sucesso foi de tal ordem, que sua metodologia de análise com base em ratings individuais – além de transforma-lo em um homem ainda mais rico – permeia hoje toda a indústria internacional do puro sangue inglês.
As variáveis do método já foram mostradas em um excelente artigo chamado “Os Números Mágicos do Timeform”, de Samir Abujamra, um dos mais instrumentados e experientes homens do cavalo da história do turfe brasileiro. Para o Brasil, porém, parece razoável saber o que os ratings passaram a representar, em termos da inserção do país no panorama do turfe mundial.
Começando do começo
No continente sul-americano, tudo começou entre os dias 24 e 26 de março de 2010 – já lá se vão 10 anos – quando a OSAF resolveu realizar o “Primeiro Encontro Sul-Americano de Handicappers”, no grande salão do Hipódromo de San Isidro, em Buenos Aires, onde a ABCPCC se fez presente.
Nesse encontro, com a participação dos Srs. Ciaran Kennely (então consultor técnico dos hipódromos de Hong Kong, Singapura, Irlanda e Inglaterra) e Melvin Davis (idem, do hipódromo de Meydan, Dubai) – ambos “handicappers” profissionais – foram realizadas cinco palestras, a saber:
(1) História, objetivos e usos práticos da classificação internacional do cavalo de corrida, com base no “ranking” mundial da raça.
(2) Aplicações práticas dos ratings.
(3) Demonstrações, em tempo real, no site da INTERNET que condensa a evolução dos ratings de todos os ganhadores das provas clássicas do calendário internacional.
(4) Como se avalia o mérito de um cavalo de corrida no hemisfério norte, e sua comparação com os critérios, até então, adotados na América do Sul.
(5) Exemplos práticos de construção e revisão dos ratings dos participantes de três das principais provas do turfe internacional: o Prix de l’Arc du Triomphe, a Breeders’ Cup Turf e a Dubai World Cup.
A história dos ratings
A classificação internacional dos cavalos de corrida através da atribuição de um rating para cada um deles (expresso internacionalmente em libras-peso) teve seu início em 1977, tendo sido imediatamente adotada pela França, Inglaterra e Irlanda.
Oito anos depois, em 1985, Alemanha e Itália aderiram ao sistema. Em 1995, foi a vez dos EUA. A partir daí, Japão, União dos Emirados Árabes (UEA), Hong Kong, Austrália e Nova Zelândia se juntaram aos demais países e criaram a chamada “Classificação Internacional”, rebatizada em 2004, com o nome de “Rankings do Cavalo de Corrida Mundial” (WTR, em inglês).
A partir desse instante, a classificação em questão passou a ter uma decisiva influência na organização do planeta turfe, transformando-se em uma espécie de “Quem é Quem” nas pistas. Neste século XXI, qualquer avaliação sobre os méritos de um cavalo – e em consequência, de qualquer prova clássica, como adiante veremos – toma como ponto de partida o seu rating.
Na verdade, o que ocorreu com o turfe não é diferente do que aconteceu com qualquer outro empreendimento humano, todos eles hoje submetidos a juízos de valor sobre sua qualidade – de produtos a empresas, passando por organizações internacionais, e chegando mesmo à “nota” para a economia de países. No mundo moderno, nada escapa aos ratings.
Embora possa parecer algo hermético – o que não é – conhecer quais são os critérios de avaliação de um cavalo de corrida, bem assim, das centenas de provas do calendário internacional, parece interessante. Pelo menos, ajuda a entender melhor o esporte, e explica as consequências econômicas que daí decorrem. É o que se propõe nessa conversa – porque isso não é um artigo, é uma conversa. A seguir.
Os conceitos básicos
São quatro os conceitos que orientam a construção do rating de um cavalo, ou de qualquer prova da programação clássica de um país onde exista um turfe organizado:
(i) As diferenças em corpos no disco de chegada – Este é o primeiro deles, a indicar a forma como cada animal se comportou em uma determinada corrida. Por outras palavras, tais diferenças exibem, ou pelo menos sugerem, o quanto de “reservas” cada competidor ainda dispunha – se é que dispunha – ao terminar a prova. Tais diferenças são correlacionadas a margens teóricas de peso para melhor avaliar a performance de cada indivíduo.
Um exemplo: na escala internacional de peso (leia-se, o “International Handicapping Scale”), 1 corpo de diferença no disco equivale a: 1,5 quilo dos 1.000 aos 1.450 m; a 1 quilo dos 1.450 m aos 1.800 m; de 0,5 quilo a 1 quilo entre 1.850 m e 2.150 m; o mesmo entre 2.200 m a 2.750 m; e de 0,5 quilo, dos 2.800 m em diante.
Isso tem a ver com a velocidade média de 18 metros/ segundo atingida pelos bons cavalos de corrida. Dessa forma, as diferenças em corpos no disco são traduzidas em quilos (ou libras-peso a eles referidos).
Caso haja alguma curiosidade em conhecer a evolução do “International Handiccaping Scale”, de 0,2 a 6 corpos no disco e seus correspondentes pesos e distâncias, a tabela a respeito consta da INTERNET.
E como, no turfe, o peso carregado por qualquer animal tem influência sobre sua performance, não custa lembrar a lição de Tesio:
“Si calcola pure che un chilo di piu sulla schienna fa perdere ad um cavalo 3 metri sopra una distanza de 2.000 metri a grande andadura.” Traduzindo: “Calcula-se, todavia, que um quilo sobre o dorso de um cavalo o faz perder 3 metros sobre uma distância de 2.000 metros a pleno galope.” (vide “Tocchi in Penna al Galoppo”, Federico Tesio, Editora Hoepli, Milão, pág.166).
É em torno desse conceito que são construídas as tabelas de peso das corridas do universo do turfe.
(ii) Performance vs idade hípica – O segundo conceito parte do pressuposto de que a avaliação da classe de um animal é tanto mais verdadeira quanto mais intensamente ele se mediu nas pistas contra seus adversários.
Daí, a dificuldade de se estabelecer um rating justo para os juvenis (assim entendidos como os produtos de 2 anos de idade), eis que eles só correm normalmente entre si.
O mesmo acontece com os produtos de 3 anos – que só são efetivamente testados a partir do confronto com os 4 anos e mais idade nas grandes provas de “peso por idade” do calendário clássico. Isso significa dizer que os produtos de 3 anos só obtêm um rating mais alto quando confrontados com os melhores das gerações precedentes.
Quando isso acontece e eles batem os mais velhos, seu rating tende a melhorar – e com ele, seu valor para o mercado.
[Parêntese: neste momento, entre as 15 maiores provas de Grupo I do turfe do mundo, a maioria se refere a confrontos de “peso por idade”. É essa mistura de animais jovens com seus adversários adultos que contribui para elevar os ratings desses Grupos I (situados hoje entre 121.42 e 126.42 libras-peso para os principais deles. Fechado o parêntese.]
(iii) Ratings e a programação clássica – O que identifica neste século XXI se uma prova é de Grupo, não é o valor de sua premiação. Tampouco, é a distância a ser percorrida, ou a qualidade técnica dos jóqueis que dela participam. Menos ainda, é o estado da pista no momento de sua realização.
O fator que consagra, eleva, ou rebaixa, a classificação de uma prova de Grupo nos nossos dias é a qualidade dos cavalos que a disputam durante 3 (três) anos seguidos – qualidade essa medida pela média dos ratings dos quatro primeiros colocados no disco de chegada.
Desta forma, uma prova é considerada de Grupo I, II ou III, quando ela mantém a média-padrão de seu rating em um período de 3 (três) anos seguidos.
E qual é a média-padrão (ou “benchmark”, se quiserem) de uma prova de Grupo do calendário clássico internacional, em libras-peso? Resposta a seguir:
Grupos I na Europa, EUA e Ásia
3 anos e mais idade: 115 libras-peso (110 para as fêmeas)
2 anos: 110 libras-peso (105 para as fêmeas)
Grupos II
3 anos e mais idade: 110 libras-peso (105 para as fêmeas)
2 anos: 105 libras-peso (100 para as fêmeas)
Grupo III
3 anos e mais idade: 105 libras-peso (100 para as fêmeas)
2 anos: 100 libras-peso (95 para as fêmeas)
É a partir desses “benchmarks” que acontece a manutenção, ou a mudança (no caso, promoção ou rebaixamento), das provas do calendário clássico. E tais mudanças ocorrem periodicamente, seja na América do Sul, seja em outros turfes e regiões.
[Segundo parêntese: em 2010, os turfes da América do Sul e da Austrália receberam um desconto de 5 libras-peso na adoção da tabela acima, desconto esse que, em princípio, valeria para os próximos 4 anos, ou seja, até 2014. A Austrália já não precisa mais desse desconto. Mas os turfes da América do Sul foram autorizados a mantê-lo (ou o continente perderia a maior parte de seus Grupos I. Na verdade, restariam uns quatro ou cinco deles, se tanto. Fechado o parêntese.]
(iv) Mudanças na programação clássica – O quarto conceito se aplica à avaliação das provas da programação clássica de cada país signatário do sistema de ratings – e o Brasil é um deles.
O exemplo clássico vem das provas de Grupo I do turfe francês, onde existem, hoje, 22 delas.
Dessas, 16 são destinadas aos 3 anos e/ou 3 anos e mais idade, ou seja 72,73% do total. O restante é dividido da seguinte forma: 5 provas de Grupo I para os 4 anos e mais idade, ou 22,73% (Prix Ganay, Longchamp, 2.100 m; Grand Prix de Saint-Cloud, Saint-Cloud, 2.400 m (cerca pela esquerda, como nós); Prix de Ispahan, Longchamp, 1.850 m; Prix Jean Romanet, Deauville, 2.000 m; e Prix de Cadran, Longchamp, 4.000 m.
Mais 1 (uma) prova de Grupo I destinada aos 2 anos e mais idade, o Prix de L’Abbaye de Longchamp, em 1.000 m, linha reta, feita sob medida para os especialistas da velocidade pura no continente (e vencida, geralmente, por animais egressos do turfe inglês…).
O calendário clássico francês adota os “benchmarks” acima mencionados e segue a tendência universal de privilegiar os 3 anos de idade. Nada de novo. É deles que o turfe se nutre para conseguir se renovar e continuar evoluindo.
Os handicappers profissionais
Seja para montar um “Handicap Especial” de peso por idade, equilibrando teoricamente as chances de cada um dos concorrentes do páreo – no hemisfério norte há vários desses Handicaps, cuja “chamada”, totalmente aberta, admite pesos que podem variar de 49,5 quilos a 62,5 quilos – seja para organizar uma programação clássica coerente, a presença de handicappers profissionais é fundamental no mundo do turfe.
Parece interessante examinar que figura é esta, porque são eles, em última análise, que constroem os ratings que hoje comandam o panorama da atividade. De saída, todos são unidos, desde cedo, pela paixão comum ao cavalo de corrida e às corridas de cavalo. Mas isso não basta.
Ao longo do processo de sua formação – e ele pode levar anos – os melhores desenvolvem outras habilidades, entre elas, as de conhecer o perfil funcional das várias linhagens do puro sangue e, sobretudo, aprendem a “ler” uma corrida com a frieza e o distanciamento dos grandes jogadores profissionais. Para eles, o importante não é exatamente descobrir porque um cavalo ganhou; o importante é saber porque perdeu.
Não por outra razão, há exemplos de bons handicappers que começaram jogando corridas e aprendendo “na carne” – no caso, no bolso – a errar menos em suas avaliações. O exemplo mais típico desse processo darwiniano de evolução pela seleção dos mais aptos, é o daqueles que passaram a trabalhar como consultores técnicos das sociedades promotoras de corridas.
Mas o ápice da profissão, no hemisfério norte, está em ser chamado para colaborar com as casas de apostas – onde isso é permitido – no instante em que elas têm que “cotar”, e geralmente com grande antecedência, os rateios eventuais dos competidores dos principais eventos do turfe. E aí, não se trata mais de simplesmente “palpitar”, e sim de lidar com o mais perigoso dos riscos para qualquer banca de apostas: o de oferecer aos jogadores do mundo um rateio maior do que ele deveria ser.
De qualquer forma, seja na América do Sul (depois de 2010), seja nos demais continentes, são eles que se reúnem periodicamente para estabelecer os ratings dos principais cavalos de cada região. E ao final do ano, todos se encontram em Hong Kong para discutir eventuais discrepâncias e bater o martelo sobre “quem é quem” no panorama clássico da temporada.
O Brasil e os ratings
Todas as provas clássicas brasileiras estão hoje sob o crivo da avaliação dos animais que delas participam. E todas estão sujeitas a promoções e rebaixamentos de graus.
Nada de especial. É assim que funciona nos turfes que pretendem estar inseridos no panorama internacional da indústria do puro sangue – caso do Brasil, membro, há décadas, do primeiro e restrito grupo de nações participantes da Federação Internacional das Autoridades Hípicas (FIAH).
Neste sentido, o GP Brasil e todos os outros Grupos I, II e III, das várias programações clássicas existentes no país, são avaliados periodicamente nos encontros dos handicappers do continente.
Apenas como exemplo, comparado com o GP Carlos Pellegrini, disputado no hipódromo de San Isidro, Jockey Club Argentino, Buenos Aires, os ratings do GP Brasil foram os seguintes nas quatro últimas temporadas hípicas:
. Ratings do GP Carlos Pellegrini (em libras-peso): 116,5 em 2016/2017; 115,5 em 2017/2018; 114,25 em 2018/2019; e 115,75 em 2019/2020.
. Ratings do GP Brasil (idem): 114,25 em 2016/2017; 113,5 em 2017/2018; 113,75 em 2018/2019. Detalhe: em virtude da pandemia do Covid-19, e da transferência do GP Brasil, este ano, de junho para outubro, ainda não há rating para a prova em 2020.
Ambas as provas, porém, estão acima do “benchmark” sul-americano de 110 libras-peso para os Grupos I do continente em relação aos 3 anos e mais idade.
As diferenças de avaliação entre os dois testes – Pellegrini e “Brasil” – tem muito a ver com os números da criação entre os dois países.
Embora quantidade não seja sinônimo de qualidade – ou a Alemanha, que cria apenas cerca de 800 produtos por ano, não teria levantado três vezes o Prix de l’Arc du Triomphe, uma espécie de campeonato da milha e meia clássica na grama – o fato é que a Argentina teve 7.586 nascimentos em 2018, contra os 1.663 do Brasil (450% a mais). E lá, existiam 774 reprodutores (158 no Brasil) e 12.950 matrizes (2.226 no Brasil). Isso, por óbvio, aumenta suas chances de produzir bons animais de corrida. (vide Statistical Information Booklet 2018 – International Stud Book Commitee – Weatherbys Ltd, London).
Ratings e os números estonteantes da Ásia
Entre todos os turfes do mundo neste primeiro quarto do século XXI, o turfe da Ásia é o que anda mais rápido. E os números de sua performance – principalmente em relação aos volumes de apostas – são nada menos que estonteantes.
Um breve resumo do que significa a contribuição das corridas para essa parte do mundo, indica que os 21 países que participam da Federação Asiática, mais os 6 membros a ela filiados, e 1 associado, contribuem anualmente com US$ 26.9 bilhões para a economia da região, geram 570 mil empregos diretos, e recolhem US$ 6.9 bilhões em taxas e impostos.
Em matéria de volume de apostas, porém, nada se compara à Ásia. E à medida em que a internacionalização do turfe evolui, são eles que dão o exemplo do que isso significa em essência.
No “meeting” de Ascot de junho de 2019, antes da pandemia do Covid-19, portanto, o Jockey Club de Hong Kong – em parceria com os ingleses e o Totepool – criou o primeiro “pool” mundial da história da captação de apostas vindas da Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Europa, Reino Unido e EUA em pedra única e regime de commingling, aumentando em 60% o volume de apostas feitas no citado “meeting”, em relação a 2018.
O que isso significa? Significa a aurora de novos tempos em matéria de apostas em corridas de cavalo. E ela mostra que não há salvação fora de uma pedra única internacional, funcionando em commingling e proporcionando plena liquidez a todos os apostadores do planeta. Irrelevante de onde esteja situado o hipódromo. Sem dúvida, outra civilização…
E assim, não por outro qualquer motivo, a reunião final de todos os comitês regionais de ratings é hoje realizada em Hong Kong. É lá que os handicappers do mundo se reúnem para discutir e, afinal, decidir sobre quem vale o quê em matéria de qualidade nas pistas.
Referência: uma libra-peso é igual a 0,45359237 do quilo. Igual a 453, 59237 gramas em nosso sistema métrico decimal. Portanto, 110 libras-peso é igual a 49,895 quilos.
Dezembro de 2020