TURFE 2018: DE CLUBE A INDÚSTRIA
Sergio Barcellos
Todas as sociedades promotoras de corridas do mundo, aí incluídas as do hemisfério norte, começaram como clubes. Entre nós não foi diferente: o primeiro “clube de corridas”, fundado no Rio de Janeiro no século XIX, reunia civis e oficiais de cavalaria do Segundo Império, todos movidos pela mesma paixão ao puro sangue inglês.
Embora clube seja algo agradável ao espírito porque reúne amigos em torno de um gosto comum, em seu início eles dependem muito mais da qualidade da imaginação, do vigor das emoções e do poder da vontade de seus fundadores, que das realidades objetivas que informam seu desenvolvimento.
No caso do Jockey Club Brasileiro, essas três condições sempre estiveram presentes. E o resultado final está à vista de todos: o esplêndido conjunto de instalações dos 640 mil metros quadrados do Hipódromo Brasileiro, um dos mais belos e preservados patrimônios arquitetônicos da cidade.
Foi com ele que o turfe floresceu entre nós e ganhou um novo impulso, principalmente a partir da Revolução de 1930, quando à excelência do novo hipódromo veio juntar-se a elite do poder político do país, a maioria dela visceral e culturalmente ligada ao cavalo. Sorte. Todas as vezes em que isso ocorre, o resultado final faz a grandeza de qualquer turfe. Aqui e alhures.
Um parêntese: é de conhecimento comum que o turfe não prescinde de um estreito relacionamento com o poder público. Em alguns países nos quais ele é extremamente desenvolvido – Japão (onde é semi-estatal), França (onde os ministros da Fazenda, Planejamento e Agricultura se sentam no Conselho Diretor do PMU), Inglaterra (onde a Rainha é criadora, proprietária, e frequenta os hipódromos nos eventos de gala), mesmo nos EUA (onde o The Jockey Club é o órgão de contato da indústria com os Comitês do Senado americano) – isso parece ser uma condição sine qua do progresso da atividade.
No Brasil, porém, o tempo passou, os hábitos, interesses e escolhas da sociedade foram sendo progressivamente alterados, a capital transferiu-se do Rio de Janeiro para o planalto central (levando consigo parte ponderável do poder político e, consequentemente, da boa vontade que ele transferia ao turfe local) e, em certo momento, as rendas da atividade começaram a dar os primeiros e inquietantes sinais de estagnação.
Na verdade, embora ainda crescentes em valores absolutos, já durante o final da década dos ’70 e início dos anos ‘80, quando se desconta a inflação do período, a tendência passa a ser de perda de ingressos em termos reais. É só fazer a conta.
Nada de novo. Isso faz parte dos processos de transformação dos negócios humanos. Quando eles ocorrem, só resta a empresas e instituições entender que a sobrevivência depende de sua capacidade de adaptar-se à forma e aos desígnios dos novos tempos. Darwin explica.
Irrelevantes as críticas que hoje podem ser feitas – numa sociedade plural, aberta e democrática elas serão sempre bem-vindas – o Jockey Club Brasileiro demonstrou capacidade para criar novas fontes de renda que conseguissem substituir aquelas que o turfe já havia deixado de suprir integralmente. Com um detalhe fundamental: sem abrir mão da manutenção de sua programação normal de corridas.
Para quem não está afeito aos números do Balanço Geral do JCB, deve ser mencionado que foram essas novas fontes de receita que mantiveram a sanidade econômico-financeira da instituição como um todo e impediram seu retrocesso – ou coisa pior.
Basta somar quanto rendem hoje os alugueres do entorno da sede do centro, mais aqueles gerados pelos espaços do hipódromo e dos eventos nele realizados. Principalmente, quando a esses últimos se juntam os obtidos pelas taxas (de manutenção e transferência de títulos), que tiveram um significativo e decisivo impulso no instante em que a magnífica sede esportiva da lagoa Rodrigo de Freitas foi concluída – colaborando para ampliar e diversificar o quadro social do JCB.
Como em todo sistema de evolução por adaptação ao meio, a natureza ensina que a caminhada é árdua e demanda tempo para se materializar. Mas foram esses novos ingressos que ajudaram a manter viva a instituição durante a longa travessia do deserto experimentada pelas várias sociedades promotoras de corridas do país.
Hoje seria impensável dispensar essas rendas. Como impensável é imaginar que o turfe do JCB teria sobrevivido incólume sem a sua contribuição.
Mesmo em meio a todas as dificuldades do turfe brasileiro, o JCB tem hoje suas cinco tribunas reformadas e em funcionamento; os bronzes, mármores e cristais centenários polidos; as pelouses recuperadas; os muros externos refeitos e limpos; os estacionamentos internos novos, nivelados e ajardinados. Além do que, vários equipamentos do turfe foram modernizados: de pistas reformadas, à geração de imagens; da cronometragem eletrônica, à rede de fibra ótica; da tecnologia da informação e totalização de apostas, à profissionalização de sua estrutura de apoio administrativo.
E com o bônus do Jockey não ter tido que se desfazer de seu patrimônio para conseguir lidar com os tempos difíceis enfrentados de modo geral pela atividade hípica do país.
Mas é o turfe que continua sendo a razão mesma da existência
do Jockey Club Brasileiro. E, então, garantida sua continuidade, chegamos a ele.
Turfe como indústria
Não existe mais turfe desenvolvido no mundo do século XXI encarado apenas como algo diletante, seja como esporte, seja como forma de lazer. Nem mesmo a expressão turfe existe com sua antiga e romântica conotação: o que existe neste primeiro quarto do século XXI é “indústria internacional do cavalo de corrida.”
Mas o que mudou, em essência, para transformar turfe em indústria? Mudaram três conceitos básicos:
(i) A forma da promover, distribuir, divulgar e gerenciar as apostas em corridas de cavalo, seja dentro de um mesmo território, seja deste para o exterior.
(ii) A evidência de que se torna mandatório gerar essas apostas através da simultaneidade de reuniões entre vários hipódromos, seja no plano nacional, seja no internacional.
(iii) O entendimento de que o movimento geral de apostas (MGA) de qualquer sociedade promotora de corridas do mundo, não é mais aquele verificado apenas nas corridas do hipódromo local, e sim o agregado que resulta do somatório dessas apostas, mais aquelas que ele recebe via a troca de imagens com o exterior. É por este critério que as atuais sociedades hoje são medidas e avaliadas.
Analisemos os três conceitos. No primeiro caso, duas são as consequências: não há possibilidade de capilarização eficiente de apostas via “agências credenciadas” (na terminologia local), sem um maciço investimento na expansão de sua rede de distribuição e o estrito controle dos pontos de venda. O que, em última análise, significa mais investimentos em sistemas, auditoria e treinamento de pessoal.
Isso significa, de saída, a total profissionalização das equipes que administram os pontos de venda, além do que sua localização obedece a padrões que levam em conta, entre vários outros, o crescimento populacional em determinada área e a classe de renda de seus novos habitantes. Leia-se, mais investimento em pesquisa e desenvolvimento.
Por outras palavras, a atividade de distribuir e controlar a evolução de uma rede de apostas em corridas de cavalo não é coisa para amador. E quando é, a sociedade concessionária dos pontos de venda corre o risco de registrar catastróficos prejuízos.
No segundo caso, é razoável perceber que não mais existe no mundo do turfe nenhum hipódromo que opere sozinho em determinado dia (“solteiro”, no jargão internacional). Primeiro, porque a regra universal – fartamente testada e difundida em qualquer turfe desenvolvido – é a de oferecer corridas de 15 em 15 minutos aos seus apostadores. Se possível, 24 horas por dia. E isso só se consegue com a concomitância das corridas em vários hipódromos, todos eles ligados pelo “simulcasting” regional em pedra única (“common pool”).
Na Europa, na Ásia, e nos EUA, os hipódromos brigam entre si para estar no “simulcasting” regional em pedra única. Reconhecem que fora dele não há salvação.
No terceiro caso, começa-se a entrar no conceito que alavancou o turfe do hemisfério norte principalmente depois do advento da INTERNET – e hoje constitui um dogma da indústria mundial do cavalo de corridas: o da irrelevância do MGA medido somente a partir das corridas locais. Coisa de meados do século XX, portanto, com quase 70 anos de atraso, no mínimo…
Hoje, o caminho de qualquer turfe que se pretenda moderno é o de operar o somatório das apostas nas corridas locais, mais o que foi jogado nas imagens trazidas do exterior em “separated pool”, ou “common pool”, conforme seja o caso, mais o percentual recebido sobre o que foi apostado nas imagens locais exportadas para o exterior. Simples de entender a lógica disso: nos dois primeiros movimentos, a sociedade local praticamente dobra o montante de suas retiradas. No terceiro, vira sócia de tudo que foi apostado no exterior em suas corridas.
Mas este é apenas o norte para se chegar à modernidade. Entrar efetivamente nela, o passo seguinte exige que as imagens de corridas locais, seja de onde for, recebam apostas do exterior em regime de “common pool.” O que significa converter o valor das apostas de fora na moeda local e expressar este valor no totalizador do hipódromo que as envia.
Quando isso ocorre, cria-se o que é fundamental em qualquer jogo de apostas rateadas: escala. E só a escala gera rateios mais compensadores e consegue atrair o chamado grande apostador em corridas de cavalo.
É assim que funcionam os grandes hipódromos do hemisfério norte. Da Europa e EUA, aos confins da Ásia e Oceania.
Desatando o nó do MGA
Todos os conceitos acima, em princípio, são do conhecimento do JCB. Afinal, desde praticamente seus primórdios, ele é membro do Grupo I da Federação Internacional das Autoridades Hípicas (FIAH) e da Organização Sul Americana de Fomento (OSAF) e seus representantes nessas duas organizações sabem do que se trata.
De igual forma, todas as carências e limitações do turfe brasileiro como um todo – mais aquelas decorrentes da administração de sua própria atividade hípica – não passaram despercebidas pela diretoria do JCB.
Também aqui, não há nada de especial. Conseguir identificar os gargalos e perplexidades que impedem o normal desenvolvimento de qualquer atividade faz parte de todo processo consciente de análise.
No caso do turfe do Jockey Club Brasileiro, sempre pareceu óbvio que as rendas líquidas geradas pelo MGA – aliás, cadentes em termos reais há vários anos – deixaram, a partir de determinado instante, de cobrir sequer os custos fixos da estrutura encarregada de gerenciar essas apostas. E esses custos são especialmente altos.
Apenas para dar um exemplo, coletar apostas em corridas de cavalo significa ter que enfrentar uma longa coorte de despesas que começam: (1) com a geração e distribuição das imagens das carreiras (há um sofisticado estúdio de TV dentro das dependências de qualquer hipódromo); (2) passam pela sua totalização (a parte do leão desses custos); (3) se expandem pelos quatro principais canais de venda (hipódromo, agências, site online, teleturfe, cada um deles com características próprias); (4) implicam um perfeito controle e gerência dos pontos de venda; (5) incluem as etapas de divulgação do pré e pós-corrida; (6) mais a contratação de pessoal das mais variadas origens e formação profissional; (7) mais a manutenção de sistemas operacionais, de hardware, de equipamentos de comunicação, de aluguel de bandas de satélite, etc, etc.
Na verdade, trata-se de uma derrama de custos fixos e variáveis, que, quando não atendidos, vulneram toda a cadeia do MGA.
Daí, a primeira constatação (e ela tem uma clareza de ofender a vista): o turfe do JCB não vai a lugar algum se insistir em querer gerenciar diretamente sua complexa estrutura de vendas de apostas.E o que é pior, sendo obrigado a improvisar em matéria de pessoal. A continuar assim, parece impossível conseguir equilibrar os resultados da atividade.
O segundo aspecto é ainda mais problemático: vender apostas em corridas de cavalo significa, de saída, ter recursos disponíveis (e expertise, claro) para investir na expansão da rede de pontos de venda, que, no caso do JCB, ao invés de crescer, até pouco tempo atrás diminuía de tamanho (e de qualidade na prestação dos seus serviços).
Outro parêntese: ninguém ignora que os pontos de venda (“agências”) continuam sendo a pedra de toque de qualquer turfe desenvolvido. De bookmakers ingleses e australianos, às redes-mamutes de qualquer operador internacional digno desse nome. Alguns deles chegam a ter 12.000 pontos de venda. O JCB tinha cerca de 60…E a cada ano esse número diminua.
Assim, sem folga de recursos para investir, asfixiado pelos custos da gerência de suas próprias apostas, atormentado pela inanição de seu MGA, pressionado pela repetição dos prejuízos anuais, o rumo parecia ser um só: de colisão.
Então, era necessário ter a coragem de mudar para se modernizar. E prioritariamente em que segmento? Apostas – e tudo que se refere a elas.
Mas para mudar, é preciso, de saída, ter a humildade de reconhecer que não dominávamos mais essa tecnologia, muito menos dispúnhamos dos meios para conduzir a atividade. Ou se um dia soubemos como fazer, o mundo mudou, tudo encareceu, e não sabemos mais. Humildade para reconhecer as próprias limitações, não é passivo, é virtude.
Resumo
Para encurtar esta história: depois de longas e difíceis negociações que se prolongaram por mais de três anos. Depois de ser submetido aos rigores de uma “due diligence”, gerência por gerência, setor por setor do JCB. Depois de criar grupos internos de trabalho que se reuniam todas as segundas-feiras, à noite, na sala dos fundos da Comissão de Corridas e entre si (aconteceram mais de 100 reuniões dessas), com a presença dos principais diretores e responsáveis pela gestão dos “n” segmentos do clube (Comissão de Corridas, Jurídico, Financeiro, Administrativo, Tecnologia da Informação, Casa de Apostas, Marketing, Engenharia), o Jockey Club Brasileiro decidiu ter chegado a hora de mudar.
Algumas coisas (boas) começam a acontecer depois disso:
(i) Os custos mensais de gerenciamento da estrutura de apostas do JCB foram praticamente zerados (ele hoje só é responsável pela geração das imagens das corridas e as apostas no hipódromo), além do que, vários outros pesados encargos, inclusive de pessoal, deixaram de existir.
(ii) A rede de pontos de venda está tendo uma significativa expansão, sem que o JCB tenha tido que aportar um centavo de investimento nisso.
(iii) O agregado do MGA (corridas locais, mais corridas internacionais) é positivo – em termos reais – depois de muitos e muitos anos de perdas. Mesmo considerando a crise econômica que o país viveu a partir de 2015 – a pior de sua história.
(iv) A gerência dos pontos de venda é 100% profissional.
(v) Os empregos vinculados ao pré-corrida, durante e pós-corrida (locutores, repórteres, comentaristas, etc) foram todos preservados e, em certos casos, ampliados.
(vi) Finalmente, o JCB se prepara para dar início ao envio das imagens de suas corridas para o exterior. Pela primeira vez na história do turfe do país.
Isso tudo não encerra o trabalho de modernização do turfe do Rio de Janeiro. Como de forma alguma, significa que o processo se esgotou. Ao contrário, ele está apenas começando. Ainda há várias etapas a percorrer e ajustes a serem feitos. Mas o passo inicial foi dado. Isso é o que importa, em última análise.
Este passo não pertence, nem pode ser atribuído a ninguém em particular. Quem o deu foi o vigor das emoções, a qualidade da imaginação e o poder da vontade dos homens do JCB, expressa formalmente pelo Egrégio Conselho da Administração da instituição – diante das realidades objetivas de nosso turfe e da necessidade de ter que mudar para sobreviver.
E no dia em que isso aconteceu, com os votos favoráveis dos dois dignos presidentes da sociedade, o atual e seu antecessor.
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Sergio Barcellos é diretor do Jockey Club Brasileiro
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