Recordações inesquecíveis (5), por Milton Lodi » Jockey Club Brasileiro - Turfe

Recordações inesquecíveis (5), por Milton Lodi

José Carlos Fragoso Pires iniciou a sua atividade como criador de cavalos de corrida com um cavalo de nome Marroquino e mais três éguas, no município de Barra do Piraí, RJ, em uma propriedade, à época, do pai dele, que ele mais tarde veio a comprar. Mas o Haras São Carlos durou pouco, pois o delirante então presidente Jânio Quadros entendeu de determinar medidas de tal modo restritivas em relação ao turfe, que a atividade correu sério risco de deixar de existir. As insanas determinações causaram um enorme estrago no turfe, haras importantes como Guanabara, dentre muitos outros, diminuíram em muito os seus componentes, muitos pararam, os preços despencaram, as corridas se esvaziaram, uma verdadeira calamidade. E assim, em 1960, terminou o Haras São Carlos.

Em 1972, José Carlos Fragoso Pires reiniciou-se no turfe como proprietário, e em 1973 comprou o Haras Santa Ana, de propriedade do espólio do inesquecível turfista gaúcho Indemburgo de Lima e Silva, nas cercanias de Porto Alegre, em um lugar chamado Beco do Cego. O nome Santa Ana foi uma homenagem de Indemburgo a uma filha. José Carlos Fragoso Pires manteve o nome e acrescentou “do Rio Grande”. Pouco depois, foi comprada mais uma área, maior e melhor, em Itapoã, perto de Porto Alegre, o haras foi para lá transferido e a área inicial vendida. A nova área fica, pois até hoje permanece, perto da anterior, e lá iniciou-se o sucesso do Santa Ana do Rio Grande.

Em janeiro de 1980, ocorreu uma nova e grande alteração no esquema criatório. O criador comprou boa parte das terras do Haras Mondesir, em Bagé, justamente o núcleo principal da notável criação, comprou também todos os garanhões, 80% das éguas reprodutoras e, ainda, os produtos ao pé. Essa compra representou um salto gigantesco, pois com as terras, as instalações e os animais, vieram juntos cinquenta anos de tradição e seleção. O Mondesir reorganizou-se nas terras não vendidas, comprou mais éguas, novos reprodutores e seguiu o seu brilhante caminho de sucessos.

Em janeiro de 1980, adquirido lote de animais, os produtos ao pé já tinham sido batizados, e uma pequena tordilha, a última a nascer em 1979, chamava-se Anilité(foto). Anilité não era bonita, no sentido de fotografias, mas era tecnicamente muito boa e mostrou muita qualidade. Aos três anos de idade, essa filha de St. Chad em Menga, por Waldmeister, venceu G.P. Henrique Possolo, 1600 metros, primeira prova de Tríplice-Coroa, chegou em segundo no G.P. Diana, a segunda prova em 2000 metros, e voltou a tirar segundo na terceira prova, que à época, chamava-se G.P. Marciano de Aguiar Moreira, em 2400 metros, ambas para sua companheira Asola.

Anilité pesava 420kg quando iniciou a sua espetacular campanha nas pistas, e seguiu se fortalecendo e ganhando peso no decorrer de sua campanha, chegando até a ultrapassar 440kg. Esse importante detalhe foi permitido por um sistema de trabalhos visando sempre à melhoria física, o melhor condicionamento físico, trabalhos sempre suaves e melhorando não só a parte muscular como a pulmonar, sempre sem exageros, e acompanhamentos diários na raia e nas cocheiras, de manhã e à tarde, não era cuidada como um bicho, mas como um animal merecedor de todo o respeito.

O cuidado e a experiência do treinador Alcides Morales foram fatores preponderantes, o botão do cronometro era relegado a um simples ponto de referência, era muito melhor, por exemplo, 800 metros em 53’ ou mais pelo meio da raia e em ritmo de exercício, que 50’ ou menos para satisfazer vaidades ou para saber do estado da égua.

O uso exagerado do cronometro serve de muletas para aqueles que não têm consciência da realidade. Os “cronometristas” exagerados ficam sabendo das condições naquele momento e não quando da hora da corrida, enquanto que dessa forma aquilo que os treinadores de sensibilidade entendem sem exaurir as forças daqueles que lhes foram confiados. Não sei se chega a ser uma regra geral, mas enquanto uns são exigidos demasiadamente para satisfazer os cronômetros, outros são preparados em exercícios adequados para entrarem nas pistas para correr com um máximo de potência, fruto de exercícios musculares e pulmonares. Para citar apenas quatro treinadores que conheci que só usavam e/ou usam o cronometro como mero acessório de menor importância posso lembrar em ordem alfabética, Alcides Morales, Elídio Pierre Gusso, Ernani de Freitas e Gonçalino Feijó.

Voltando a Anilité, em 1984 foi levada a Cidade Jardim para correr o G.P. OSAF. A enorme expectativa de vitória ficou frustrada, pois ela chegou em último, em péssima atuação. Levada ao Serviço Veterinário mostrou-se com as mucosas arroxeadas, exausta, e foi entendido que pagara um preço muito alto para sair do Rio de Janeiro, ao nível do mar e ir correr em 700 metros de altitude. A ideia inicial foi mandá-la direto, de São Paulo para Bagé, mas o treinador Alcides Morales pediu ao proprietário José Carlos Fragoso Pires para levá-la de volta à Gávea, e correr mais uma ou duas vezes.

Cerca de dois meses depois, em meados de julho de 1984, Anilité foi correr o G.P. 16 de julho, em 2400 metros, prova preparatória do G.P. Brasil. A vitória de Anilité foi autoritária, e duas ou três semanas depois ela foi correr o G.P. Brasil. Nesse intervalo de duas ou três semanas, fora os galopes largos visando manter o fôlego em ordem e manter a forma atlética, Anilité fez apenas um trabalho, foi leva a trabalhar uma única vez, e em 1200 metros suave. No G.P. Brasil de 1984, veio a consagração das altas qualidades de Anilité e do seu esclarecido treinador.

Anilité foi para o haras em Bagé e foi boa mãe, tendo, inclusive, produzido dois ganhadores de provas de grupo.

Anilité repousa em um lindo gramado no Haras Santa Ana do Rio Grande, em Bagé (foto), ao lado de outras campeãs que colaboraram para a grandeza do haras.

Poderia ser alvitrado por alguns apresados que Anilité era tão boa que mesmo com um treinamento insuficiente teria conseguido o seu estrondoso sucesso. Mas passados alguns anos, o proprietário Carlos Dondeo Júnior entregou ao Alcides Morales uma potranca de porte médio, de nome Zardana. O treinamento foi calculadamente suave, visando às melhorias atléticas da potranca, e sem a preocupação de tempos cronometrados. Após um período considerável de trotes e galopes, Zardana foi levada a fazer o seu primeiro trabalho para relógio, 800 metros sem apurar muito. Os 48’ segundos marcados indicavam de sua alta qualidade, e daí para frente só galopes em função de suas condições atléticas. Na semana anterior de cada corrida, trabalhava suavemente a distância do páreo, e só, nada de aprontos ou semelhantes. Zardana foi a primeira líder de sua geração, sempre com vitórias fáceis e autoritárias, até que foi exportada para os Estados Unidos. Fora aqueles primeiros 800 metros e um trabalho suave na semana anterior de cada páreo, só galopava para manter a musculatura e os pulmões em ordem e, naturalmente, o sistema vascular.

Esse sistema deveria ser o princípio geral e, naturalmente, ir sendo adequado a cada característica individual, e não o contrário, trabalhos e partidas semanais para satisfazer cronômetros.

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