O turfe é um manancial de ricas recordações. Detalhes inesquecíveis vêm à lembrança, sem que o tempo consiga sequer esmaecer os fatos, muitas vezes, ocorridos ao longo do tempo.
Em 1945, na semana do Grande Prêmio Brasil, a grande atração era a presença de Irineo Leguisamo(foto), montando o favorito Filón, um lindo alazão argentino de frente aberta, um filho de Full Sail, que era o melhor corredor sul-americano à época. Leguisamo, nascido no Uruguai e radicado na Argentina desde moço, tinha fama internacional, era até mencionado quando os ingleses e os franceses falavam dos seus maiores ídolos das rédeas, Lester Pigott e Ives St. Martin.
Apesar de ter nascido sem visão em um dos olhos, Leguisamo era um fenômeno. A sua postura na sela, estribando longo e dividindo o seu peso no centro de gravidade, isto é, na cernelha, dava às suas montadas um sentido de bom equilíbrio, de uma melhor distribuição do peso físico a ser carregado. Leguisamo não sacudia o corpo, não balançava, mantinha-se imóvel, as rédeas comandando com técnica e suavidade com a mão esquerda, na direita o chicote só para eventualmente alertar e junto ao corpo, e uma enorme clarividência quanto ao percurso em função dos poderios locomotores de seus conduzidos e nos dos competidores.
Para ter uma ideia das qualidades de Irineo Leguisamo, basta lembrar que ele era o ídolo do magistral e lendário Luiz Rigoni. O melhor cavalo, Filón e o melhor jóquei, Irineo Leguisamo, eram os centros de atração do Grande Prêmio Brasil de 1945. Àquela época, os melhores jornais estavam radicados na Gávea. Os jornais publicavam diariamente, páginas inteiras dedicadas ao turfe, com reportagens, entrevistas e fotografias. Não havia televisão nem agências de apostas, quem quisesse assistir as corridas tinha que ir ao prado. Na opinião geral, o único cavalo que poderia tentar enfrentar Filón, era um argentino radicado no Brasil, o castanho Secreto, que iria montado por uma das glórias da escola chilena de jóqueis, o inesquecível Oswaldo Ulloa.
Ulloa era um pequeno atleta, além de trabalhar ininterruptamente das 5 às 9 horas da manhã, antes dos trabalhos fazia meia hora de ginástica na Tribuna dos profissionais, mesmo nos dias de corridas, após os trabalhos corria a pé todo o percurso das “baratinhas”, hoje Fórmula Um. Saia do prado percorria a Rua Visconde Albuquerque, a do canal, ia até atravessar o túnel, subia por onde é hoje a favela da Rocinha, descia a Rua Marques de São Vicente até novamente o prado, correndo sem parar o enorme trajeto.
Uma vez, perguntei ao Ulloa se ele não ficava muito cansado, logo nas manhãs dos dias de corrida. Ele sorriu e me disse que era assim que ele se sentia bem, quanto mais exercícios, maior a disposição. Ulloa, além de um mestre na arte de montar, era um atleta privilegiado para a sua profissão, por ser pequeno. Montava leve, era forte e um excelente jóquei. Rigoni me disse mais de uma vez que, Ulloa era o melhor chileno que ele havia enfrentado.
Os jornais divulgaram que, no sábado, véspera do Grande Prêmio Brasil, Filón iria fazer um trabalho montado pelo Leguisamo, às 07:30 da manhã. À época eu tinha quinze anos de idade e, naturalmente, cheguei às 7 horas para conhecer o grande ídolo e vê-lo montar o favorito. Quando eu cheguei, às 7 horas, a arquibancada dos profissionais já estava lotada pelos jóqueis, treinadores, proprietários e o pessoal dos jornais, revistas e rádio. Havia gente até da tribuna social. Na raia o movimento era pequeno, todo mundo com pressa, todos queriam ver um espetáculo de técnica e qualidade. Leguisamo chegou pontualmente às 07:30. A boina (à época ainda não havia capacetes) e a gravatinha borboleta eram grenás, camisa creme de seda de mangas compridas, culote bege combinando com o cinto e as botas, que eram de um tipo comum à época, com pequenos grampos na parte da frente onde se firmavam os cadarços.
A figura de Leguisamo era impressionante, e ele foi logo assediado por jornalistas e fotógrafos. Com simplicidade e simpatia, sorridente, pediu que o deixassem trabalhar Filón e depois, então, ficaria à disposição. Filón já estava junto ao relógio quadrangular perto da entrada da raia, em mãos do cavalariço e com o treinador ao lado. Leguisamo e o treinador conversaram um pouco. O treinador segurou as rédeas do cavalo, o cavalariço colocou nele uma manta, montou e entrou na raia de areia, sob os olhos do treinador e do jóquei. Filón deu uma volta e meia de galope largo, sempre pelo meio da pista e em ritmo controlado, um galope para exercitar os músculos e os pulmões. Filón voltou às mãos do treinador. O empregado passou um pano para enxugar o suor, e ai o treinador colocou a sela e ajudou Leguisamo a montar.
O público assistia em completo silencio. Filón foi levado ao passo até o meio da reta oposta, começou a galopar e, por volta dos 1.000 metros Leguisamo acelerou. Sempre pelo meio da pista, em galope vistoso Filón entrou aberto na reta final, braceando livremente, mas sem ser exigido, com Leguisamo em uma postura perfeita, serena, técnica. Cruzando o disco, Filón foi diminuindo aos poucos e parou por volta da seta dos 1.600 metros. Quando Leguisamo saltou, imediatamente trocou meia dúzia de palavras com o treinador, que levou o cavalo para as duchas e Leguisamo foi cercado pelos jornalistas. Após as entrevistas, Leguisamo pediu licença para ir embora, pois ia jogar golfe, esporte que ele gostava e praticava para manter a forma. Aquela manhã foi mágica.
No domingo, o que se viu foi um espetáculo de qualidade de cavalos e jóqueis. Filón e Secreto correram no meio do pelotão, e na reta Filón tomou a ponta. E a gritaria aumentou quando Secreto atropelou por fora, com Ulloa em performance eletrizante no melhor estilo da escola chilena. Dois ótimos corredores, de propriedades, respectivamente, dos brasileiros, José Buarque de Macedo (ouro, frizo e boné azul) e de Oswaldo Aranha e Jorge Jabour (preto e boné encarnado), correndo em poderios máximos, um com o gênio Irineo Leguisamo e o outro com aquele que era a expressão maior da escola chilena. Um montando de freio e o outro de bridão, dois expoentes de seus estilos, em luta fantástica. Nos últimos 200 metros, Secreto cansou (Filón era melhor) e Ulloa desviou o seu cavalo para dentro, tentando em desespero impressionar Leguisamo, mas o grande mestre ostensivamente esticou o braço direito e empurrou o Secreto para fora. Ulloa voltou à novamente desviar, e Leguisamo empurrou-o outra vez para fora. Filón seguiu adiante, com Leguisamo mantendo sempre o próprio equilíbrio e o do seu cavalo, e Secreto deu por finda a sua brilhante atuação.
A luta entre Filón e Secreto, a espetacular atuação de Leguisamo e Ulloa, mostrando o que havia de melhor das duas escolas, a argentina e a chilena, foi talvez a mais linda e impressionante demonstração de qualidade técnica que o Hipódromo da Gávea já assistiu. Um espetáculo para aqueles que tiveram o privilégio de assistir.