Essa semana tivemos o prazer de ouvir um pouco mais da história de um dos maiores treinadores de cavalos de corrida, o profissional Roberto Morgado Junior, o Bebeto.

Bebeto não nos deixa dúvidas sobre o seu amor pelo turfe e em especial pelos cavalos em momento algum. Lúcia afirma:
“Não existiria o Bebeto sem os cavalos ou sem o turfe. Ele sonha com os animais e os trata como se fossem filhos dele. Sempre foi assim.”
Nascido no Rio de Janeiro, em 31 de maio de 1956, Bebeto foi criado na cocheira de número 5 da Vila Tattersall do Hipódromo da Gávea, de onde vem suas memórias da infância.
“Tive uma infância muito bacana, adorava brincar nas vilas, andar de bicicleta, jogar bolinha de gude e soltar pipas, mas era no meio dos cavalos que eu me sentia melhor e aproveitava mais. Costumo falar que com um dia de vida já estava na cocheira de olho nos cavalos. Eu com cinco anos de idade escutei que um cavalo do meu pai estava com cólica e eu me recordo dele não estar lá. Eu peguei uma seringa com o medicamento, peguei uma cadeira, subi para ficar na altura do cavalo e apliquei a injeção, salvando a vida daquele animal. Desde pequeno, todo mundo sabia que eu seria treinador, estava no sangue. Minha linha paterna é Eulógio Morgado e a materna é Gonçalino Feijó. Não tinha como eu fugir disso!”

“O velho Gonça era a minha grande paixão e de todos os netos, todos os dias a tarde quando os cavalos saíam das cocheiras para caminhar nas vilas, ele sentava no portão da cocheira para ver o vai e vem dos animais andando e ele costumava me chamar para sentar ao lado dele. Assim, ao lado do vovô eu fui aprendendo a observar melhor os animais. Quando eu tinha treze anos de idade, ele comprou uma eguinha chamada Dezena, criou o Stud Meus Netos e me disse que aquela égua seria de minha responsabilidade, que eu iria fazer o treinamento dela. Posso dizer que minha primeira vitória foi aos treze anos com a Dezena. O jóquei foi o Miguel Hevia, chileno, na época, aprendiz ainda.”
O tempo foi passando e Bebeto cada vez mais ia mergulhando no mundo dos cavalos. Conta um caso curioso quando ele e o primo, o ex-jóquei G.F. Almeida, o Goncinha, resolveram fazer uma proposta inusitada ao senhor Valter Cunha, responsável pela Escola de Profissionais do Turfe à época.
“Tinha um cavalo na escolinha que foi aposentado das pistas aos quatro anos de idade e foi cedido a escolinha para ser punga e ajudar os garotos que estavam aprendendo a montar. Eu sempre via aquele cavalo trotando, galopando e eu cismava que ele ainda podia correr. Chamei o Goncinha e perguntei se ele não queria me ajudar a convencer o Sr. Valter a nos dar o cavalo. Para resumir, pegamos o cavalo. Ele estava completamente desenturmado, já tinha seis anos, aprontamos ele e ganhamos quatro corridas consecutivas. O nome dele era Alicerce. Isso saiu até no Jornal O Globo na época.”
Bebeto seguiu treinando informalmente e apresentava os cavalos no nome de seu pai, falecido em 1982. A matrícula de treinador profissional só veio em 1984. Se recorda que contou com a ajuda dos senhores Antônio Carlos e Luís Macedo para conseguir a matrícula, já que não atendia os pré-requisitos como ter trabalhado durante alguns anos como cavalariço e alguns outros anos como sub-gerente. O menino prodígio havia, de certa forma, pulado essas etapas!
Cada vez mais experiente, vitorioso e firmando seu nome na história do turfe, aos 40 anos de idade, a vida resolve lhe pregar uma peça.
“Eu tenho diabetes desde os oito anos de idade, mas confesso que levei minha vida de uma maneira que não tomei os devidos cuidados com a minha saúde. Da noite pro dia tudo começou a mudar. O Ricardinho completou seis mil vitórias em cima de um cavalo meu e, naquela noite, depois das corridas, fui a um show da cantora Simone. Acordei no dia seguinte achando que tinha um bichinho em meu olho esquerdo, mas já era por conta da hemorragia. Cheguei a operar, mas não tivemos sucesso. Fiquei um tempo enxergando só com um olho, mas logo tive um glaucoma e perdi a visão por completo. Quando isso aconteceu, eu fiquei apavorado. Eu sabia que seria muito difícil dali em diante, mas encontrei na minha família um apoio e uma força que nunca passou pela minha cabeça em desistir da profissão. E essa força eles me dão até os dias de hoje.”
Bebeto fica pensativo por um instante, e acaba voltando um pouquinho no tempo para nos contar que a pior coisa da vida dele foi lidar com a perda precoce do irmão Eulógio.
“Lidar com a perda da visão foi muito complicado, principalmente no início, mas sem dúvida, a pior coisa que me aconteceu na vida foi a perda do meu irmão, em 1979. Ele estava junto com o Paraíba (Treinador Geraldo Feijó) no carro viajando em direção ao Centro de Treinamento Vale do Cuiabá, na região serrana aqui do Estado do Rio de Janeiro e os dois sofreram um acidente. Não tem um dia sequer que eu não pense nele. Está sempre nas minhas orações. Tenho certeza que se fosse vivo, seria um grande treinador.”

“Vou te dizer que não é nem um pouco fácil perder a visão, mas é curioso que automaticamente, outros sentidos se fazem mais presentes. Eu sempre reconheci um cavalo só de bater o olho nele, desde moleque novo, hoje, reconheço de outras formas. Só de escutar a respiração do cavalo ao galopar, eu sei te dizer se ele está bem ou não. A minha intimidade com os cavalos é tanta que eu sou capaz de perceber coisas que outras pessoas não percebem. Já teve veterinário condenando cavalo meu e eu só de examinar com as mãos, descobri que era coisa simples de tratar.
Tem uma história que um cavalariço meu chegou para mim na semana que um cavalo iria correr e disse que eu teria que fazer o forfait dele, que estava muito doído. Eu fui examinar o cavalo e ao passar as mãos em uma de suas patas, notei um caroço. Mandei ele raspar o pêlo do cavalo e fazer uma assepsia no local e passar uma pomadinha. Em menos de 12h, o cavalo não sentia mais dor naquele local. Na época do Araras, que só tinha eu de treinador no CT, eu sabia qual cavalo estava na raia só de ouvir o bicho respirar e galopar.”
Bebeto foi se adaptando às circunstâncias da vida e, com um talento ímpar para treinar um cavalo de corridas, mesmo com a perda da visão, seguiu confiante e ganhando corridas. Passou por momentos difíceis na profissão, como da vez que acabou se mudando de mala e cuia para Belo Horizonte. Mas foi de lá que, mesmo os cavalos tendo que enfrentar nove horas de viagem até o Hipodromo da Gávea, Bebeto ganhou bastante corridas a ponto de afirmar que teve gente tentando descobrir onde ele comprava serragem para a cama dos cavalos, onde comprava ração, alfafa, etc.
Sorridente, diz que os fornecedores sempre foram os mesmos, mas que ele ganhou muitas corridas naquela época, isso ele ganhou.
“Quando resolvi ir para Belo Horizonte com os cavalos, não tinha nada lá. Não tinha água, não tinha luz… Foi o Dr. Luis Edmundo, do Stud Capitão, que me ajudou muito e bancou isso tudo. Eu vinha para o Rio dois dias antes das corridas e o meu filho, o Betinho, vinha sempre no caminhão acompanhando os animais. Eu digo que a minha passagem por Belo Horizonte foi mais um cartão de visitas que eu apresentei, tanto é que um tempo depois, em 2005, fui surpreendido pelo convite do Doutor Julio para ser o treinador exclusivo do Haras Santa Maria de Araras.”

“Aquelas chuvas estão na minha memória para sempre. O Centro de Treinamento acabou, foi devastado. Nossa casa ficou com água até o teto. Tivemos que tirar os cavalos de lá e alojar em outro CT, e até mesmo por conta da minha disponibilidade, a bola foi passada para o Betinho. Ele já me acompanhava desde novo, por conta do meu problema de saúde. Ele teve que abrir mão da adolescência dele para assumir muitas responsabilidades e aquela, a de assumir de vez os cavalos do Araras, não seria complicado para ele. Ele já estava preparado para um desafio daquele tamanho.”
Emotivo assumido, daqueles que choram até com enredo de novela, Bebeto afirma que uma de suas maiores emoções foi a vitória de Cisne Branco na segunda prova da Tríplice Coroa. O cavalo havia sofrido bastante com a enchente no CT e ficou impossibilitado de correr a primeira prova. Bebeto afirma categoricamente que Cisne Branco teria sido Tríplice Coroado não fosse os contratempos sofridos.
A voz embarga ao relembrar a madrugada na véspera da prova.
“O Cisne Branco pegou a estrada na noite anterior a segunda prova da Tríplice Coroa e chegou na Gávea por volta de 1h da manhã. Pedi ao Antonio Henrique, meu outro filho, que me levasse até a cocheira do Araras porque eu queria ver o cavalo. Quando chegamos na cocheira, fui passar as mãos no cavalo e podia sentir o lustre que estava o pêlo dele. Lembrei de tudo o que aquele cavalo tinha sofrido e comecei a chorar ali mesmo. Eu tinha certeza que iríamos ganhar o páreo, e não deu outra. Ganhou firme. Foi uma vitória muito especial para todos nós.”
Conversar com Bebeto é fazer uma viagem no tempo. Inteligente e com uma memória boa demais, sabe tudo de turfe e de cavalos de corrida. Sincero e sem rodeios, diz que ganhou muito dinheiro, mas infelizmente não se preocupava com o futuro. Tem consciência de que aproveitou bastante e deixou de cuidar mais da própria saúde, que o Diabetes, quando controlado, não traz consequências tão sérias como a que o afetou.
Diz que já experiente e bem mais maduro, aprendeu bastante com a vida e hoje dá muito mais valor a coisas simples do que antigamente, e se emociona até mesmo quando ele ou o filho Roberto Morgado Neto vencem um páreo de claiming. Os cavalos para ele, são como se fossem filhos, uma extensão da família.

Antes de agradecer a conversa e encerrar a entrevista, perguntei se uma pessoa com tantas histórias como ele tem, ainda sentia falta de realizar alguma coisa.
“João, quando um homem deixa de sonhar, a vida para ele não tem mais razão. A gente sempre tem que almejar algo, mas eu vou te dizer um negócio… Eu bati três vezes na trave no GP Brasil, só que o meu sonho mesmo é ver o Betinho vencendo o Brasil.”
Não tem como a gente não pensar que além de orgulho do pai ao ver o filho vencendo a maior prova do turfe nacional, esse sonho do Bebeto tem um sentimento de gratidão e reconhecimento a todos os esforços do filho em estar sempre ao seu lado todas as vezes que ele precisou.
Texto e fotos: João Cotta